Realização: A Casa Frida & Confraria das Lagartixas
Neste primeiro encontro, não é necessário realizar a leitura do livro.
Resultado da votação: 54,52% O Amor nos Tempos do Cólera 45,48% Dom Casmurro
O Amor nos Tempos do Cólera
"Ele esperou por ela por cinquenta e três anos, sete meses e onze dias com as respectivas noites."
"O Amor nos Tempos do Cólera, é uma belíssima história de amor, pontuada por cartas perfumadas e pétalas de flores prensadas entre as folhas.
O amor apaixonado da adolescência, o amor conjugal, o clandestino, o tímido, o amor sexual ou libertino.
O tédio do amor, suas lutas, esquecimentos, metamorfoses, suas deslealdades e doenças, triunfos, angústias e prazeres.
O amor por carta, o despertar desse amor, próximo ou distante, o amor louco.
O amor de meio século, que encontra os amantes septuagenários se tocando pela primeira vez. O amor que se guarda e espera, enfim, sua realização."
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Convidada Especial | Joana Rodrigues
Joana Rodrigues é professora de literatura em língua espanhola da Unifesp e jornalista. O escritor Gabriel García Márquez tem sido tema recorrente de seus estudos acadêmicos realizados na USP. No mestrado, dedicou-se às crônicas jornalísticas e no pós-doutorado à correspondência do colombiano. Ou seja, Joana segue sendo uma leitora inquieta de Gabo.
Documentário | Gabo: a criação de Gabriel García Márquez (Justin Webster)
O escritor colombiano Gabriel García Márquez (1927 - 2014), Nobel de Literatura de 1982, encanta leitores mundo afora com romances consagrados, e seu "realismo fantástico", com uma escrita colorida pelos contrastes. Dentre os admiradores de sua obra, o cineasta inglês Justin Webster mergulhou no mundo do escritor para realizar o documentário Gabo: a criação de Gabriel García Márquez (disponível na plataforma Netflix com quatro prêmios internacionais no currículo).
Clique aqui para assistir na NETFLIX!
Antonio Pinto e a compositora e cantora Shakira foram indicados ao Globo de Ouro pela canção Despedida, que integra a trilha sonora do longa-metragem.
Ouça a Playlist do filme, clicando aqui.
Os 85 anos de Gabo | Eric Nepomuceno
Matéria feita em comemoração aos 85 anos de Gabo. Publicada no Blog da Confraria em 11 de março de 2012.
"... meu coração tem mais quartos que uma pensão de putas." Florentino Ariza por Gabo
O escritor: "Já não cuido de nada, não me interesso por nada, não me preocupo por nada. Isso é o que me preocupa", diz e ri.
O aniversário foi na terça-feira, sem bandas nem fanfarras. Depois da festança dos 80 anos, quando, além disso, foram celebrados os 40 anos da primeira edição de "Cem Anos de Solidão", os 25 de seu Nobel e os 55 da publicação do primeiro conto, ele tem preferido o sossego da casa, dos filhos, netos e amigos mais amigos. O aniversário foi na terça, mas desde o sábado anterior começaram os telefonemas dos amigos, antecipando abraços. E ele lá, no silêncio do casarão. Este 2012 celebra outros aniversários redondos de seu livro mais lido (só os exemplares vendidos de "Cem Anos de Solidão" ao longo de 45 anos significam uma população cinco vezes maior que a de Portugal, ou uma Espanha e meia, ou duas Venezuelas), os 30 anos do Nobel, os 60 do primeiro conto. Ele já não se importa com isso.
No domingo, por exemplo, na mansidão do casarão amplo e branco do bairro de Pedregal de San Angel, na Cidade do México, um endereço emblemático - calle Fuego, quase esquina com a calle Água - almoçavam, com ele e Mercedes, Carmen e Álvaro Mutis, seu amigo mais fraterno, uma amizade que perdura há mais de seis décadas. Longe dos ruídos do mundo, longe dos vendavais da vida, era só mais um almoço de domingo, o último antes que ele cumprisse o que cumpriu na terça-feira, 6 de março de 2012: 85 anos de uma vida vivida a cada instante.
Já lá se vai um bom tempo que ele vive assim, quieto no seu canto, recebendo pouquíssima gente, navegando nas águas mansas de uma memória sem fundo nem fim. Na última vez que estivemos juntos, faz uns seis meses, lá pelas tantas ele me disse: "Eu já não cuido de nada, não me interesso por nada, não me inquieto por nada, não me preocupo por nada". E, depois de um silêncio fugaz, fulminou: "Isso é o que me preocupa". E riu seu riso de caribenho, prenhe de um humor único. O mesmo riso de sempre, que distribui luz, mas não apaga um lampejo de terna melancolia que não sai de seus olhos.
Em 2004 publicou "Memória de Minhas Putas Tristes". E silenciou. Cinco anos depois, num almoço tardio de um sábado de sol, ele me disse: "Não tenho mais ideias, por isso deixei de escrever". Lembrei a ele que muitos anos antes, em agosto ou setembro de 1981, quando estava por sair a "Crônica de uma Morte Anunciada", e exatamente ali no gramado do casarão da calle Fuego e ao lado do limoeiro carregado, eu tinha ouvido a mesma coisa. E que depois vieram livros invulneráveis, a começar por "O Amor nos Tempos do Cólera". Ele sorriu e não disse nada.
Várias passagens de seus livros parecem fervores de uma imaginação febril. Parecem. Na verdade, são reflexos sutis da memória coletiva
Naquele 2004, uma semana depois do lançamento de "Memórias de Minhas Putas Tristes", ele entrou, pela primeira vez em seis anos, na casa que tem em Cartagena das Índias, no litoral do Caribe colombiano, fincada nas margens da muralha que delimita a cidade velha e vizinha ao antigo convento de Santa Clara.
Varou em claro a primeira noite esperando, depois de seis anos, a hora de contemplar uma visão única, perseguida sempre: o prolongado e exato momento em que amanhece sobre Cartagena. Em que amanhece sobre sua memória, sobre sua vida. Faz cinco anos que ele não volta a Cartagena, mas Cartagena continua nele.
Os amigos se impressionam, até hoje, com a permanência da costa caribenha da Colômbia não apenas em sua obra, mas principalmente na sua alma. Recordo, nitidamente, a impressão que me causou, no inverno de 1980, que foi pesado no México, o ambiente cálido de seu estúdio de trabalho, nos fundos do casarão da calle Fuego. Havia um aparelho que controlava a temperatura, marcada rigorosamente em 25 graus - que é a que ele recordava como sendo a de Cartagena. Nem um grau a mais no inverno nem um a menos no verão. Não importava a temperatura lá de fora: dentro do estúdio, que eu chamava e chamo de templo, ele estava sempre na Cartagena da sua memória. A mesma cidade onde ele esperou um incerto amanhecer no fim de outubro de 2004.
É nesse mundo, onde ele está ancorado, um mundo envolto nas neblinas da memória, e onde tudo pode acontecer de novo, que ele amanheceu na terça-feira, o primeiro dia de seus 85 anos de vida.
Antes, muito antes, o primeiro de seus muitos dias foi um domingo. Ao amanhecer de 6 de março de 1927, em Aracataca, um povoado perdido nos confins do Caribe colombiano, despencou um aguaceiro impiedoso. Debaixo da tormenta, às 8h30 em ponto, ele viu a luz pela primeira vez. Foi chamado de Gabriel José de la Conciliación García Márquez, primeiro filho de Luisa Santiaga e Gabriel Elígio. Nasceu na casa de seu avô materno, o coronel Nicolás Márquez Mejía - que, aliás, naquele exato momento estava na igreja acompanhando a missa das 8.
Aracataca era um casario, uma cidadezinha de nada, plantada em meio a extensos bananais. Seus dias eram de um calor sem fim, sufocados por nuvens de poeira.
Em muito do que escreveu ele recorda aquele sol da infância - um sol tão inclemente em sua claridade que os girassóis não sabiam para onde girar. E não havia chuva: quando despejavam do céu, as águas vinham na forma de tormentas assustadoras, furiosos aguaceiros extraviados de tempestades tropicais.
O escritor reiterou sempre qual foi o pilar básico de sua escrita: a vida cotidiana, a real realidade de quem habita e sobrevive neste continente
Nessa paisagem transbordante de cores e calores Gabriel García Márquez passou seus primeiros oito anos - tempo suficiente para amealhar uma memória desmesurada e perene e também para descobrir o mundo e suas coisas a partir do casarão do coronel, onde vivia cercado por mulheres, pelas histórias de fantasmas contadas por sua avó e pelas lembranças de guerra de seu avô.
Dessa infância, desse pequeno universo íntimo, surgiu não apenas sua escrita, mas sua maneira de compreender a vida, de ver e abraçar a realidade transbordante que é a América Latina. Foi dos primeiros a entender que nessas nossas comarcas a realidade é muito mais delirante que a mais delirante das imaginações.
Em tudo o que escreve ele soube, melhor que ninguém, traduzir essa marca tão forte e profunda. Disse e redisse infinitas vezes que não há uma só linha de toda a sua escrita que não tenha como ponto de partida a realidade.
Várias passagens de seus livros parecem fervores de uma imaginação febril. Parecem. Na verdade, são reflexos sutis e poéticos da memória coletiva, do imaginário das nossas gentes. Ou seja: uma outra forma de relatar a realidade. De explicar o inexplicável. De nos aproximar a outro mundo possível, diferente daquele ao qual parecemos condenados.
Essa forma, tão insólita aos olhos de quem necessita ansiosamente de uma explicação para tudo o que fuja aos parâmetros do acomodamento, desnorteou os explicadores do óbvio. E desnorteou tanto que eles acabaram zanzando perdidos por labirintos obscuros, à procura de uma luz esclarecedora.
Essa luz finalmente surgiu na forma de um rótulo - o "realismo mágico". Dura labuta a dos explicadores. Em plenos anos 70, tiveram de regressar a 1925, quando um crítico de artes visuais utilizou pela primeira vez a expressão "realismo mágico" para se referir ao trabalho de um grupo de pintores pós-expressionistas alemães. Pois foi daí, das necessidades explicadoras de um crítico de artes plásticas, que surgiu o rótulo que décadas depois emigrou para a literatura hispano-americana.
Tropeçando aqui e ali com outras denominações, todas destinadas a buscar uma explicação para aquele jorro incessante de poesia e realidade que teve muitas vertentes, mas cujo eixo mais visível - não o único, por certo, mas o mais visível - está justamente num livro chamado "Cem Anos de Solidão", os explicadores parecem ter se esquecido do principal: a força da observação, a força da desaforada poesia e da obstinada persistência que impregna a vida da gente dessas comarcas perdidas chamadas América Latina. Uma realidade que está aí, que não muda: somos a América Latina, essa é a porção que nos coube na partilha do mundo, somos amálgama de mil raízes enredadas que se alimentam umas às outras.
García Márquez não foi nem é o único a se empapar dessa certeza. Mas soube traduzir essa pena e essa maravilha como ninguém. É verdade que a partir dele e dos explicadores do óbvio acabou predominando, para a literatura contemporânea da América Latina, o rótulo de "realismo mágico", como se a realidade vivida por nossa gente não fosse, em si, absolutamente mágica nestas terras que nos tocaram na grande repartição do mundo.
García Márquez, porém, reiterou sempre qual foi o pilar básico de sua escrita: a vida cotidiana, a real realidade de quem habita e sobrevive neste continente atormentado de esperanças. Escreveu exatamente como as histórias que ouvia da avó materna. Sua obra tem muito mais de realismo do que se poderia imaginar e, por isso mesmo, parece tão mágica.
Da mesma forma que a América Latina está presente em tudo o que García Márquez escreve, como matéria-prima e cenário intangível e permanente, também a ideia de romper fronteiras entre o que se supõe real e o que se supõe imaginação surge a cada passo, como para recordar que somos capazes, a partir justamente da nossa imaginação coletiva, de avançar contra essa realidade - e transformá-la. Uma espécie de reflexo, carregado de contundente lirismo, daquilo que disseram outros latino-americanos de olhar afiado: em nossos países, nada do que acontece é resultado de um destino malvado, e sim de um sistema injusto, que impede que sejamos o que poderíamos - e deveríamos - ser.
Em um de seus contos - "Os Funerais da Mamãe Grande" -, a certa altura um personagem diz que está na hora de começar a contar a história, "antes que cheguem os historiadores". Ou seja: a hora de antecipar a voz da memória popular, coletiva, à voz que acaba por prevalecer, a da história oficial.
Pois essa voz coletiva, essa memória profunda e multitudinária, foi o que García Márquez buscou - e encontrou.
Pela vida afora, viveu e vive apegado a alguns de seus temas recorrentes. Persistiu em se agarrar na certeza mais absoluta de que a raça humana é capaz de sobreviver às piores catástrofes, inclusive as que ela mesma gera em seus afãs demenciais de ganância. Continuou obcecado pela fé na possibilidade de existirem outras formas de se viver - mais justas, menos absurdas, mais dignas. Continuou reivindicando, para todos aqueles que parecem condenados a cem anos de solidão, uma segunda oportunidade sobre a Terra.
Todos os seus livros são livros da solidão e da nostalgia, e também da busca desesperada dessa segunda oportunidade. São livros reveladores da infinita capacidade de poesia contida na vida humana. O eixo, porém, é o mesmo, ao redor do qual giramos todos: a solidão, a solidão e a esperança perene de encontrar antídotos contra essa condenação.
Certa vez, numa entrevista, García Márquez disse que escrevia para que seus amigos de sempre gostassem dele ainda mais. Conseguiu isso e conseguiu muito mais. Queria conquistar mais afeto dos amigos e acabou escrevendo uma obra descomunal - a história de todos nós, da nossa infinita solidão carregada de esperanças.
Muitos anos atrás, num fim de tarde em Zurique, no meio da calmaria suíça Gabriel García Márquez foi apanhado por uma tormenta de neve. Para fugir dela, entrou num bar. Tempos depois, contou para um de seus irmãos que dentro daquele bar ele descobriu o que gostaria de ter sido de verdade nesta vida: "Tudo estava em penumbras, e um homem tocava piano nas sombras, e os poucos clientes que estavam lá eram casais de namorados. E naquele momento entendi que eu queria ter sido aquele homem que tocava piano sem que ninguém visse o seu rosto, tocava só para que os namorados se amassem mais".
Assim levou a vida: querendo viver na penumbra, com sua timidez olímpica. A fama estrondosa que desabou em cima dele depois de "Cem Anos de Solidão" só fez reforçar essa timidez, essa inútil vontade de viver na penumbra, cercado de amigos e de afetos. Continua aferrado ao seu sentido particular da amizade: "É um pouco essa coisa de máfia: do lado de cá, estão os meus amigos; do lado de lá, o resto do mundo, com o qual tenho um contato muito escasso".
E diz também que é um ser muito solitário e triste. Uma característica, diz ele, que contraria todas as aparências, mas é profundamente caribenha. Diz que a fama é capaz de fabricar a maior e mais pavorosa das solidões. Que a solidão da fama só é comparável à solidão do poder. E diz que tem uma curiosidade e uma atração sem limites pelo poder, justamente por isso: "O poder absoluto é a realização mais alta e mais completa do ser humano, e por isso resume, ao mesmo tempo, toda a sua grandeza e toda a sua miséria".
Vive cercado de fama, viveu vizinho ao poder, e ele mesmo foi imensamente poderoso, tanto que preferiu se isolar.
Sim, sim: nestes últimos anos, Gabriel García Márquez anda quieto no seu canto, o casarão branco e amplo de uma esquina impossível, a da água com o fogo. Ancorado numa memória luminosa, navega águas serenas.
Lembro de quando ele se trancava em seu estúdio, vestido com um macacão de mecânico - mas, isso sim: feito do jeans que ele havia comprado no Vietnã -, e escrevia das sete da manhã às duas da tarde. Usava uma Smith Corona elétrica. Às 10 h em ponto, fazia uma pausa e se dava ao luxo de comer canapés elegantes e tomar refresco de tamarindo. Depois, voltava para a caça da palavra exata. Sempre mergulhado na temperatura do seu Caribe da memória, o mesmo Caribe e a mesma memória onde continua navegando cada minuto de cada hora de cada um de seus dias.
Lembro de seu caminhar de bailarino caribenho, de seu sorriso de fulgores, de sua entrega monástica à escrita.
Diz que não escreve mais. Que já não tem ideias. Será?
Continua caminhando feito bailarino pela vida. Continua esbanjando luz quando sorri. Continua em sua infinita solidão, rompida apenas pelo afeto dos amigos mais amigos.
Continua o mesmo de sempre. Querendo, talvez, ser aquele pianista do fundo de um bar na penumbra de uma tarde perdida em Zurique, aquele que tocava para que os namorados se amassem mais.
Eric Nepomuceno é escritor, autor de "Coisas do Mundo" (Companhia das Letras), "O Massacre" (Planeta) e "Antologia Pessoal" (Record). Traduziu oito livros de Gabriel García Márquez, de quem é amigo desde 1978.
por J. C. Guimarães
Descontada a singularidade de “O Outono do Patriarca” — influência mais direta de William Faulkner? —, talvez “O Amor nos Tempos do Cólera” (1985) seja o livro mais importante de Gabriel García Márquez, depois do consagradíssimo “Cem Anos de Solidão”. Capítulos inteiros do livro deixam em nós fortes impressões, seja a amizade de Juvenal Urbino pelo antilhano Jeremiah de Saint-Amour, seja a própria história de amor do médico sanitarista com o centro feminino da narrativa: Fermina Daza. Autêntica fortaleza de ânimo e de caráter, Fermina é objeto de disputa entre dois homens completamente diferentes entre si. Mas o que mais conta, apesar da força do primeiro amor — relação que perdura quase o livro inteiro —, é a história maluca do protagonista para conquistá-la. Mesmo depois de casada.
Juvenal começa ganhando o jogo por algumas razões: primeiro, conquista a simpatia do velho e ambicioso Lorenzo Daza, pai da moça. Segundo, o próprio Juvenal é uma figura solar, racional e muita bem-sucedida social e economicamente, em total contraste com a personalidade doentia de seu rival. Florentino Ariza é um poeta lúgubre, romântico nos moldes dos românticos da segunda metade do século 19, quando tem lugar metade dos acontecimentos narrados. Fermina só não o esquece, talvez, por influência de uma prima solteira do interior, Hidelbranda, cujo fogo insatisfeito se espelha nas maluquices daquele desesperado poeta. Entre outros disparates febris, o rapaz é capaz de escrever “cartas” de amor de mais de 60 páginas para a adolescente assustada (eles se conhecem da infância). Temos, em perspectiva, a sorte de enxergá-lo pela ótica de um escritor de final do século 20. Reside neste fato sua salvação para nossa memória.
Se Márquez escrevesse a mesma história com o espírito doentio daquele século 19 romântico, a coisa desandaria. Seria tão lacrimosa e chata que não suportaríamos o tal Florentino Ariza, como em alguns momentos mal suportamos o Paulo, de “Lucíola”, em José de Alencar. Porém o suportamos, porque o temos sob as lentes de um realista distanciado mais de uma geração dos acontecimentos. É tempo bastante para que fosse concebido sob luzes menos graves, e seus sentimentos como mais uma ilusão de amor desmistificada. Se suportamos as desventuras de Florentino é, portanto, por causa do irônico deboche do seu autor, cujo feito é tornar seu personagem tão divertido: “Foi essa a época em que cedeu aos ímpetos de comer as gardênias que Trânsito Ariza cultivava nos canteiros do pátio, e desse modo conhecer o sabor de Fermina Daza. Foi também a época em que encontrou por acaso num baú de sua mãe um frasco de um litro da água-de-colônia que vendiam de contrabando os marinheiros da Hamburg American Line e não resistiu à tentação de prová-la para buscar outros sabores da mulher amada”.
Censuramos tais loucuras de amor, mas gostamos sinceramente de Florentino Ariza como se gosta de um amigo maluco, mas do bem. Ele é surpreendente em sua evolução, tendo inventariado nada menos que 622 “amores continuados”, sem contar os fugazes. Casto ele já não é, a essa altura, mas absolutamente libertino. Bastou conhecer Rosalba (supõe!), e depois a viúva de Nazeret, para descobrir a estupidez dos amores virginais. O romantismo lúgubre atenua-se para dar lugar ao amor mundano, que o mantém vivo, mitiga seus ciúmes da amada (casada com o magnânimo Juvenal Urbino de la Cale até a morte do médico) e o faz suportar cinco décadas de espera. Cinquenta e um anos, nove meses e quatro dias, para sermos exatos. Fantástico!
Florentino Ariza é um Quixote sem espada e morrião: tanto quanto o cavaleiro de Cervantes, vive um amor idealizado e platônico, curtido em leituras obsessivas, não menos patético ou disposto a façanhas legendárias em nome de sua própria Dulcineia del Toboso. Pois o que seria o plano de resgatar o galeão San José do fundo do mar com suas riquezas, apoiado apenas por um menino de 12 anos de idade (Euclides), senão uma alucinação digna dos moinhos de vento concebidos pelo cavaleiro da Mancha? Florentino Ariza é um personagem picaresco, como expõe aquele trecho que diz possuir “um ar de cachorro batido, cuja indumentária de rabino caído em desgraça e cujas maneiras solenes não podiam alterar o coração de ninguém”. E este outro: “todo aquele que atravessou em seu caminho sofreu as consequências de uma determinação arrasadora, capaz de qualquer coisa, por trás de uma aparência desvalida”. São ecos de Cervantes.
Diante disso, ninguém suspeitaria que haja em “O Amor nos Tempos do Cólera” ecos também de Tchekhov. Mas há. Uma das cenas seminais do livro — justamente o rito de iniciação sexual e consequente amadurecimento sentimental de Florentino — é aquela em que nosso herói, certa noite, é desvirginado por uma mulher desconhecida que ele supõe ser, de três possibilidades, a tal Rosalba. Florentino chega a tratar o fato como “revelação”, tão determinante que é para o seu destino: “Certa noite em que interrompeu a leitura mais cedo que de costume, dirigia-se distraído para as privadas quando uma porta se abriu ao passar ele pelo refeitório deserto, e uma mão de falcão o agarrou pela manga de camisa e o fechou num camarote. Mal chegou a sentir o corpo sem idade de uma mulher nua nas trevas, empapada em suor quente e com a respiração ofegante, que o empurrou de barriga para cima no beliche, lhe abriu a fivela do cinturão, soltou os botões e se desmembrou toda, acavalada em cima dele, e o despojou sem glória da virgindade”.
Florentino muda completamente depois desse acontecimento, e com ele o livro em que é protagonista, descansado enfim daquela assombração pueril, padecendo a malaise de um Álvares de Azevedo. Pois bem: a origem dessa cena parece ser “O Beijo”, um dos contos mais célebres de Tchekhov. Lá existe um acaso que expõe o soldado Riábovich a “uma pequena aventura”, que lhe sucede ao atravessar dois ambientes em trevas numa mansão em festas: “Nesse ínterim, inesperadamente para ele, ouviram-se passos apressados e um frufru de vestido, uma ofegante voz feminina murmurou: ‘Até que enfim!’, e dois braços macios, cheirosos, indiscutivelmente femininos, envolveram-lhe o pescoço; uma face tépida apertou-se contra a sua e, ao mesmo tempo, ressoou um beijo”.
Tanto num caso como no outro, não se sabe quem foi a mulher, e tanto em um quanto no outro, também, assistimos ao momento que transfigura para sempre a vida do personagem. São travessias simbólicas. A diferença sutil e muito engraçada é que enquanto o quarto de Riábovich tem o olor de “choupos, lilases e rosas”, o camarote em que Florentino e sua amante rolam no escuro tem o cheiro de um “alagado de camarões”. Até então, Florentino teimava em não manter relações com as putas oferecidas pelo tio Lotário Thugut, pois “era virgem, e havia proposto a si mesmo não deixar de sê-lo, se não fosse por amor”. Bem, pelo menos até provar a carne. Nunca mais se contentaria em comer gardênias e beber perfumes para, deste modo, contentar-se com o sabor de uma mulher. “No auge do gozo tinha tido uma revelação na qual não podia acreditar, que se negava mesmo a admitir, e era que o amor ilusório de Fermina Daza podia ser substituído por uma paixão terrena.”
Feita essa transição vital para o homem adulto, Florentino torna-se um empresário de sucesso no ramo fluvial e está pronto para continuar sua façanha: roubar Fermina do não menos bem-sucedido dr. Juvenal Urbino. O sanitarista é personalidade do mundo científico e cultural de São João da Ciénaga, com inúmeros títulos e um fenomenal legado cívico para a cidade portuária. A quem (é claro!) deseja a morte. O que no momento certo decorre — pois a saúde do velho octogenário é de ferro — das traquinagens de um louro de criação.
Se o “O Amor nos Tempos do Cólera” possui menos crédito do que “Cem Anos de Solidão”, é porque aprendemos a esperar do escritor colombiano histórias recheadas de coisas absurdas, como fizera naquela obra em que criara certamente mais dificuldades para seus leitores. A dupla latino-americano formada por Mário Vargas Llosa e Gabriel García Márquez anunciava-se ao mundo no final dos anos 1960, e o último exporia uma nova faceta do realismo mágico-fantástico iniciado por Alejo Carpentier e Jorge Luis Borges em décadas anteriores. Segundo este critério, o último livro do escritor colombiano sobressai — de longe —, àquele outro, embora seja mais cansativo em muitos pontos, talvez porque nem todas as biografias desfraldadas ali nos interessem tanto.
Em termos comparativos, o romance de Florentino Ariza tem muito pouco de fantástico, exceto certas imagens pontuadas no texto, longe da devoção de um Borges por mundos inteiramente concebidos, ou mesmo da essência onírica do clã dos Buendía. Largas passagens da narrativa lembram apenas aquilo que o olhar europeu a nosso respeito classificaria de “exótico”. Ou seja, o colorido, a sensualidade e a malemolência que a sociologia de Gilberto Freyre descreve tão bem em “Casa Grande e Senzala”, ao interpretar a porção portuguesa do continente sul-americano, em seu intercâmbio com nativos e africanos.
É fácil ler certas páginas de “O Amor nos Tempos do Cólera” e recordar a sociologia vazada de literariedade de Gilberto. A comparação é justa, quando Márquez se põe a descrever as condições sanitárias da cidade portuária onde vivem seus personagens, São João da Ciénaga, e o impacto social dos lixões e cloacas espanholas: condições perfeitas para a disseminação do cólera morbo, doença que justifica a profissão de Juvenal Urbino. Talvez seja este o trecho mais precioso com características de ensaísmo, do romance. O contexto da obra, quase inteiramente real, inclui um surto virótico que dizimou em torno de mil pessoas na Colômbia, entre 1849 e 1850, misturando-se à calamidade sanitária — que “causara em onze semanas a maior mortandade em nossa história” — ecos de uma guerra civil, entre caudilhos.
O romance de Florentino Ariza e Fermina Daza só não é mais realista por causa da fantástica persistência do protagonista. Já a história dos Buendía só não é mais fantástica (ou mais mágica) devido às intromissões do real, que o perpassam como a luz que atravessa as persianas de um sonho. Unifica-os indissoluvelmente o estilo poderoso de Márquez, no qual uma frase é recorrente — “a salvo”, seja dos estragos da memória, seja de qualquer outra coisa. A característica mais recorrente — está-se falando do estilo de Márquez — é a frase composta, com advérbio de negação seguido de conjunção adversativa, como “não” “e sim”, “não” “e mas” e assim por diante, criando para a literatura uma musicalidade pessoalíssima, de inesquecível beleza. Um exemplo singelo, pinçado nos confins de “O Amor nos Tempos do Cólera”: “Durante a noite não eram despertados pelos cantos de sereias dos peixes-bois nas pontas de areia, e sim pela baforada nauseabunda dos mortos que passavam boiando rumo ao mar”.
E ainda este outro, sintomático nos dias que correm no Brasil, onde uma pandemia sob sinais trocados dos governantes aumenta o número de óbitos: “E nunca se soube o número de suas vítimas, não porque fosse impossível estabelecê-lo, e sim porque uma de nossas virtudes corriqueiras era o pudor das próprias desgraças”.
Sobretudo, trata-se de um romance elegíaco sobre a persistência do amor e suas possibilidades na velhice. É tarde para o sexo: Florentino Ariza jamais o desfrutou nem desfrutará com intensidade, ao lado da mulher que mais amou na vida. Os dois finalmente reconciliam-se, depois que desaparece um fantasma para dar lugar a um homem capaz de oferecer-lhe a coisa mais importante para uma mulher daqueles tempos: segurança. Quando reinicia suas investidas, “se revelava um Florentino desconhecido, com uma clarividência que não correspondia às missivas febris da juventude nem á sua conduta sombria da vida inteira”. Fermina Daza está com 72 anos e ele com 76. Depois de alguns recatados encontros de reaproximação, ambos se trancam num navio de propriedade de Florentino, tendo por companhia apenas o capitão, ao leme. A viagem final pelo Rio Madalena — rio da vida em direção ao desconhecido — não é nada menos que essa canção elegíaca.
“O Amor nos Tempos do Cólera” possui certa ternura de um quadro de Marc Chagall, com que também possui notáveis semelhanças. Parece nutri-los a mesma afeição. Este é um livro milagroso, mas as imagens que unem Gabriel García Márquez ao pintor serão melhor observadas em “Cem Anos de Solidão”, obra “revolucionária” (como disse Giulio Carlo Argan a respeito do pintor surrealista), sem abrir mão do “populismo”, pois sabe que “a fonte da linguagem não é a lógica, mas a imaginação”.
Quando?
06/04/23 - Introdução à Leitura
Roda de conversa on-line: das 19h30 às 21h
Onde?
Na sua casa através do aplicativo ZOOM - Baixar agora! - (Play Store) - (Apple Store)
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Para participar, basta cadastrar o seu melhor e-mail em nosso site.
O link de acesso à sala ZOOM será enviado às 08h no dia do evento, além das atualizações das próximas rodas de conversa e cirandas de leitura.
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