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Entre Arte e Sonho: Frida

"And of the dark days

Painted in dark gray hues

They fade with the dream of you

Wrapped in red velvet

Dancing the night away"

"E dos dias escuros

Pintados em tonalidades de cinza escuro

Eles se desvanecem com o seu sonho

Embrulhado em veludo vermelho

Dançando a noite toda"

(Burn it Blue - Caetano Veloso e Lila Downs)

Arte de Sharon Cummings

Os quadros de Frida Kahlo me foram apresentados ainda na infância e, aos poucos, fui me aproximando de suas obras, sobretudo por presentes que ganhava, em geral biografias, que despertavam meu interesse e envolvimento. O que mais me chamou a atenção em um primeiro momento foi a força que suas obras artísticas transmitiam. Com elementos de dores profundas, os quadros de Frida mostravam grande intensidade de cores e elementos que transitam entre a dor e a alegria. Em suas obras, há sempre algo que se suspende e se detém; algo de obscuro, desconhecido. Qual seria a relação entre o sonho e a arte? “Sonho, logo ex-isto (existo fora de mim)”. Frida era, por vezes, considerada uma artista surrealista - realizou uma exposição com André Breton em Paris - mas o que mobilizava a artista eram suas dores da vida, dizia pintar a sua realidade. Porém em suas obras realidade e sonhos se misturam para o espectador, mas não seria assim a experiência do viver? Uma mistura de sonhos e realidade? Diante das obras de Frida me deparo com a estranheza de seu conteúdo, suas vivências, suas dores, assim como me detenho com a estranheza em mim.

“O sonho para Freud é como um pictograma - uma escrita em imagens - , como um rébus, uma charada que põe em jogo a linguagem, decompondo o signo de maneira a desdobrá-lo (...). A linguagem, no trabalho do sonho e na interpretação que visa a refazê-lo, é densa, literal e cheia de nós e “umbigos”, pontos cegos que desafiam e vão além da significação para nos atingir como verdadeiros acontecimentos, exatamente como na poesia e na arte.” (XXVI, Rivera)

Frida Kahlo nasceu em julho de 1907, porém assumiu 1910 como ano de seu nascimento. O ano de 1910 foi também o início da Revolução Mexicana, movimento armado contra a ditadura de Porfírio Diaz e a favor da reforma agrária. A Casa Azul, onde a artista nasceu e morreu, hoje transformada em museu, localiza-se na Cidade do México, na rua Londres em Coyoacán. Toda a infância de Frida foi marcada pelas batalhas revolucionárias mexicanas, o que influenciou seu envolvimento político. Nessa fase, a relação mais próxima da artista era com seu pai, Guilhermo Kahlo, que não poupava esforços para arcar com os gastos médicos da filha e a quem Frida devotava intenso carinho.

Aos doze anos, a artista ingressou na Escola Nacional Preparatória, considerada a melhor instituição de ensino do México, sendo ela uma das 35 meninas entre 2 mil alunos. Nesse período, aprendeu a ler em três idiomas: espanhol, alemão e inglês. Em 1922, com quinze anos, conheceu Diego Rivera enquanto pintava um mural em um auditório do colégio em que estudava. Aos 18 anos, sofreu um acidente de bonde que a marcou por toda vida e que fez com que Frida se submetesse a diversas cirurgias. Em razão desse acidente, Frida começou a pintar.

Em 1929, casou-se com Diego Rivera, com quem teve um relacionamento obsessivo e conturbado. Frida sofreu três abortos. Faleceu aos 47 anos, vítima de embolia pulmonar, com fortes suspeitas de que tenha cometido suicídio. A arte de Frida foi marcada por cores fortes e vivas com conteúdos autobiográficos que tornaram-se um símbolo mexicano e uma referência mundial (HERRERA, 2011). Embora possuindo uma trajetória de vida sofrida, Frida Kahlo foi encontrando meios de sobreviver e proteger-se de seus conflitos emocionais e dores físicas, sobretudo na prática da pintura. Expressou força e superação em sua obra, fornecendo novo sentido a suas dores a partir da arte: “E com um dedo desenhava uma porta... Por essa porta eu saía na imaginação, com grande alegria e muita pressa…” (Frida Kahlo)

No seu diário, ao explicar a origem do quadro As duas Fridas, a autora relata que deveria ter cerca de seis anos quando viveu intensamente uma amizade imaginária com uma garota mais ou menos da mesma idade. Já adulta, Frida descreve em seu diário que, na época em que contraiu poliomielite, desenhava uma porta na janela do seu quarto e, através dela, saía uma “outra Frida”. Alegre, a “outra Frida” aparecia sempre sorrindo e dançava como se flutuasse. A verdadeira Frida dizia observar e contar seus segredos para a amiga, que trazia conforto e intimidade. Quando apagava a porta desenhada na janela, ela retornava para sua imaginação: “Passaram-se 34 anos desde que vivi aquela amizade mágica e cada vez que a recordo mais ela se aviva e mais crescia dentro do meu mundo.” (KAHLO, 2012, p. 82)

As fantasias possuem um lugar de destaque na forma de ser da artista no mundo. Essa recordação infantil de Frida, aponta para uma possível tentativa de ressiginificar suas dores por meio da arte, como uma saída possível para elaborar os seus traumas. Assim, adentrar no mundo das artes incentiva o aprofundamento de estudos sobre psicanálise em um diálogo constante com o universo da criação artística e, claro, da experiência.

Os caminhos escolhidos por cada um são como a escolha dos pincéis, das cores e do que cada um vai pintar sobre a tela que condensa dores e beleza, sofrimento e esperança de si. Aí, a capacidade de analisando e analista sonharem juntos também é fazer arte: “A pintura foi uma parte da batalha de Frida Kahlo pela vida.” (HERRERA, 2011, p. 98).

As obras de Frida Kahlo (1907-1954) são viscerais, pungentes e nos convidam a penetrar, de modo privilegiado, na expressão do seu interior. Aqui, vida e obra se espelham de tal modo que a busca constante, veemente perseguida de Frida Kahlo, parece ser o de se perder nas obras, se entregar com voracidade e vivacidade ao seu processo artístico, para se encontrar na vida, com si mesma e, claro, com a sua história. De modo semelhante ocorre o processo analítico: mergulhamos nas associações livres, (des)cobrimos nosso mundo mais profundo, nos aproximamos do nossos conteúdos (des)conhecidos inconscientes para, então, ressignificar nossas perdas.

"Y ella es flama que se eleva, Y es un pájaro a volar Y es un pájaro a volar En la noche que se incendia, El infierno es este cielo Estrella de oscuridad And the night sky blooms with fire And the burning bed floats higher And she 's free to fly"

"E ela é chama que se eleva E é um pássaro a voar E é um pássaro a voar Na noite que se incendeia O inferno é este céu Estrela de escuridão E o céu da noite desabrocha com fogo E a cama em chamas flutua mais alto E ela está livre para voar"

(Burn it Blue - Caetano Veloso e Lila Downs)

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