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Manuelzão e Miguilim - João Guimarães Rosa


“Minha cabeça tá doendo,

meu corpo doença tem.

Quem curar minha cabeça,

cura meu corpo também.”

João Guimarães Rosa

Em 1956, Guimarães Rosa publica seu Corpo de Baile, alguns meses depois da consagrada obra Grande Sertão: Veredas e dez anos após o lançamento de Sagarana. Em 1965 decide dividir seu Corpo de Baile em três volumes. Foi daí que surgiram Manuelzão e Miguilim, No Urubuquaquá, no Pinhém e Noites do sertão.

Conhecedor de 13 línguas, na sua escrita nenhuma palavra está ali por acaso. Grande estudioso do latim e do grego, Guimarães antes de desenvolver a linguagem do sertão, se direciona para a origem das palavras. Suas obras convocam para o tempo da lentidão, as palavras precisam ser degustadas, algumas frases fazem ir e vir, repetindo em voz alta, impressionando pela potência que elas provocam tendo como cenário, o Sertão. “Quase todo o mundo tinha medo do sertão; sem saberem nem o que o sertão é.” O que seria o Sertão senão o próprio movimento da vida em toda sua complexidade?

Guimarães eleva a palavra ao estatuto sagrado. As palavras possuem força física. Ler uma obra do autor convoca para uma movimentação interna, causa de desejo. Por isso talvez o movimento de leitura e releitura de suas obras. A incrível capacidade do autor de trazer temas complexos tais como a dolorosa passagem pela infância, a entrada na vida adulta, o envelhecimento, os medos e principalmente os lutos que elaboramos por toda uma vida. Essas questões também são primordiais à psicanálise: Para que viemos? O que move o desejo? O que é o tempo? Como sustentar as relações? Como explicar a ambiguidade e a complexidade dos sentimentos humanos?

Assim como as obras de Freud, que requerem incontáveis releituras e que trazem à luz a importância de dar voz aos sentimentos humanos para, a partir de então, se construir uma narrativa, a obra de Guimarães se equipara nesse sentido e em muitos outros, convocando para esse tempo de recordar, repetir para então elaborar. O autor narra sobre “os crespos do homem, o homem dos avessos”. Os grandes abismos das questões humana: o amor, a doença, a morte, a ambiguidade de sentimentos e principalmente sobre a busca de sentido na vida.

Na obra Manuelzão e Miguilim, o autor utiliza uma narrativa atemporal, ambas as histórias - Campo Geral e Uma estória de amor, iniciam uma estrutura de tempo vago: “Um certo Miguilim…” e “Ia haver a festa. Naquele lugar…” Ao suspender a história para “esse tempo sem tempo”, convoca o leitor para um tempo mais lento que se modula na travessia iniciada por cada um. Além disso, utiliza a narrativa em primeira e terceira pessoa circulando entre o protagonista, o narrador e o leitor. Uma narrativa espelhada em que o eu e o outro são simultâneos. A genialidade do autor atribuiu a literatura para uma experiência estética com efeito transformador.

Em Campo Geral, Guimarães narra a história de Miguilim, um menino de oito anos que aos poucos vai “tomando um golinho de velhice”. Vivia no Mútum, que do latim significa mudo, silencioso, obscuro e lá onde “os dias não cabiam dentro do tempo. Tudo era tarde!” O processo das perdas que implicam a infância são relatados, Miguilim vai se dando conta que está sozinho em suas decisões e se questiona “como saber se o que está fazendo é certo, mesmo os outros não estando vendo”? O que define o certo, o errado? O que é o bom, o ruim? Sua mãe estava “sempre pensando em o que estava por trás dos morros do Mutúm”, enquanto seu pai era agressivo e exigente, demonstrando grande descontentamento por ele. O seu melhor amigo era o irmão mais novo, Dito (nome que deriva do verbo ‘dizer’). O único que parecia compreender sua “alma que temia gritos”. Uma das passagens mais tristes, é a morte de Dito ainda menino. A descrição do luto de Miguilim resume longa teoria psicanalítica sobre o tema:

“Todos os dias que depois vieram, eram tempo de doer. Miguilim tinha sido arrancado de uma porção de coisas, e estava no mesmo lugar. Quando chegava o poder de chorar, era até bom - enquanto estava chorando, parecia que a alma toda se sacudia, misturando ao vivo todas as lembranças, as mais novas e muito antigas. Mas, no mais das horas, ele estava cansado. Cansado e como que assustado. Sufocado. Ele não era ele mesmo. Diante dele, as pessoas, as coisas, perdiam o peso de ser. Os lugares, o Mútum - se esvaziavam, numa ligeireza, vagarosos. E Miguilim mesmo se achava diferente de todos.”

Que lugar foi este que Miguilim perdeu frente ao falecimento do irmão? Como elaborar algo que se perdeu e que não faz registro? Como ressignificar o traumático?

Descrevendo o trabalho do luto, Freud escreve - “A tarefa é realizada detalhadamente, com um grande dispêndio de tempo e de energia de investimento, e, durante esse período, a existência do objeto perdido prossegue psiquicamente”, é preciso tempo para sair do caos e elaborar as ambivalências em relação ao objeto perdido. Durante este período, a fala do enlutado retorna ao objeto perdido para dele se desligar. Seria a fala um instrumento de alcance para o inominável? Nem tudo é possível de se colocar em palavras. Há algo da ordem do indizível que se inscreve diante do trabalho do luto, um certo mal estar que não se produz sintoma além do vazio. Não por acaso, neste período Miguilim deixa de contar histórias e está tomado pela dor da perda do querido irmão, que era “uma pessoinha velha, muito velha em nova”.

Passou muito tempo que Miguilim ficou “chorando aquela saudade sozinha”. Apenas depois de um longo período, ganha um favo de mel e parece que as doçuras da vida voltaram. Um certo doutor de óculos surge e traz uma nova perspectiva, agora ele via o Mutúm bonito! O que é preciso aprender a ver? Pontalis aponta que pintura e o sonho ensinam-nos o inverso: “que é preciso desaprender a ver para que o horizonte da coisa, seu pano de fundo, se dê a ver em seu imediatismo, para que o invisível apareça através do visível”. E assim, Miguilim com sua visão poética inicia sua travessia para a cidade na companhia do doutor (que poderia ser o duplo do próprio Guimarães?). A saída da infância, para a entrada na vida adulta... Novas veredas…

Uma estória de amor, entramos na narrativa de Manuelzão e ao contrário de Miguilim, ele reflete sobre a passagem do tempo. “O tear, o tear… quando pega a tecer vai até ao amanhecer…” Havia perdido o pai ainda menino e a história se inicia com uma festa da inauguração da capela que Manuelzão fez em homenagem a sua falecida mãe. Amava escondido a esposa do filho e vivia já sem vontade de voltar pra casa. Agora “não sentia o aviso do cheio, que devia de vir depois do vazio.”

Um sentimento de estranhamento e culpa. Tinha um filho que tinha pouca afinidade, se pergunta “ se teria algum remédio que curasse um erro e mudar a natureza das pessoas”. “Manuelzão, em sua vida, nunca tinha parado, não tinha descansado os gênios, seguira um movimento só. Agora, ei, esperava alguma coisa.” O que Manuelzão procurava? “Ser dono de si”, era o que queria. Se apropriar de seu nome e olhar para suas origens. “Só na foz do rio é que se ouvem os murmúrios de todas as fontes.”

O velho Camilo com sua voz singular que conta a história do Boi que partiu do mundo, “o boi que já sonhou o homem”! Essa história tem um efeito apaziguador da angústia e oferece uma nova empreitada para Manuelzão que se movimenta em direção à novos desafios. Foi a partir de então que retoma o desejo por cavalgar e deixa seu desejo conduzir seu destino. “Este cavalo é conhecedor deste mundo todo. Eu afrouxo a rédea dele…” Não seria esse o efeito da boa literatura? Transmitir o poder e a força de uma história?

Tanto Miguilim quanto Manuelzão remete aos lutos da infância que são refeitos por toda uma vida, não apenas diante de uma perda ou morte de separação, mas porque a transitoriedade de tudo obriga, nos conduz a uma morte para haver um renascimento. A travessia pelo Édipo por exemplo é a renúncia à posse absoluta dos objetos de amor, para aceitar substitutos e reformulações. Implica o complexo de castração, a passagem dos ideais absolutos para os ideais possíveis. Novas Travessias...

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