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As intensidades pulsionais na criação poética


Memória não é o passado é o presente passado a limpo em mergulho no furo do futuro.

Neste tempo de que disponho aqui, quero falar sobre o devir e seus paradoxos, sobre seus antagonismos e complementaridades. A memória só pode ser vivida sentida, visualizada e pensada no presente. Portanto, ela é como uma enzima, um catalisador que intensifica a abertura de trilhas para outros universos de nossa existência. A memória é um catalisador que em potência intensifica a nossa vida. Ela possibilita: Ver de novo o verde que jamais vi. Neste sentido em concomitância e múltiplos movimentos, uma memória resgata o passado no presente, faz pulsá-lo e nos projeta para o futuro. Em uma sociedade como a nossa, o ressentimento, as sensações de infinitos vazios, o nihilismo e as neuroses, fazem com que as pessoas comecem a perder completamente a possibilidade de movimento intenso vital. E isso é um sintoma mortífero do nosso tempo. Neste sentido, a memória funciona como um tampão do presente, fazendo-o rodar aparentemente sem sair do lugar, a tropeçar, a enroscar-se em imagens vividas como perpétuos pretéritos. Nesse sentido, as memórias com suas imagens produzem somente dores, angústias e depressões. Reativamente, essas memórias também produzem os ódios disseminados em todos os níveis, desde a constituição das subjetividades até suas amarrações nos laços sociais. Neste contexto, temos as memórias enzimas catalisadoras que intensificam o viver/pensar e as memórias pesadas e paralisadoras dos movimentos vitais. Acredito que o poeta, no seu ato de produzir poemas, desdobra espaços/tempos e navega por caminhos de minhocas, caminhos não lineares e com tempos não cronológicos. Os físicos já pensaram sobre essas questões e postularam o que chamaram buracos ou caminhos de minhocas, também conhecidos como pontes de Einstein-Rosen, que os previram em 1935. Como dizem os físicos, caminhos de minhocas são as falhas cósmicas que possibilitam que distâncias enormes possam ficar próximas através destes atalhos. Busco, através desta teoria científica, criar uma alegoria que possa tentar explicar como o homem vive e se apropria de seu universo pulsional. A produção poética, ou seja, a materialização de um poema, é fruto da captação, pelo poeta, desde os turbilhões cósmicos até sua expressão em palavras. Ou seja, ele produz uma grande condensação ritmada de palavras interconectadas. Essas palavras interconectadas ritmicamente são a possibilidade da aparição do poema que é produzido pelo poeta. Assim sendo, as sensações que são apresentadas ao poeta conectadas intensamente às suas percepções são a matéria prima para que o poema pulse das entranhas do poeta, até suas expressões plásticas materializadas em palavras que são sempre moventes. Fiz todo este arco para tentar esboçar um contexto em que o tempo cronológico não é o tempo da produção poética. O tempo da produção poética é o tempo do devir em que presente, passado e futuro pulsam em concomitância num presente inesgotável, num presente de fluxos de intensidades em que o poeta pôde captar ondas e colocá-las em palavras. Quando falo em ondas, falo em freqüência e amplitude e a junção de ambas produz ritmos que são as intensidades pulsionais. Entendo por campo pulsional esse arco que inclui as intensidades corporais pulsantes até suas expressões na vida cotidiana e incluo nisto a potencialidade poética do homem. O poema, portanto, não é um gênero literário. É um fluxo que penetra na linguagem, utilizando-se dela e concomitantemente escapando-se dela, deixando sensações pulsantes no corpo. Este armazena essas sensações pulsantes que se apresentam ao sujeito como ritornellos. Ritornellos são passagens “pontes” que se repetem em uma composição musical, portanto, em articulações rítmicas das notas musicais. No caso do poema, o ritornello é a própria cadência rítmica do poema e sua mescla com as palavras. Assim sendo, os ritornellos são sempre ativações de ritmos que se atualizam para produzir o furo do futuro. Este é o que, na alegoria do buraco de minhoca a que se referem os físicos, se atualiza no presente e produz o vetor que gesta futuros.

Memória não é o passado é o presente passado a limpo em mergulho no furo do futuro

Faço um ritornello deste poema para dar ênfase no verso: é o presente passado a limpo. Isto posto, aponta para o movimento rítmico se atualizando no sujeito. A expressão do poeta dependerá de como esses fluxos se auto-organizarão em palavras. Portanto, haverá um salto, uma ultrapassagem de níveis de intensidades. Os ritornellos que chegam se constituem de notas musicais pulsantes e deverão ganhar articulação em palavras. A poesia, portanto, é sinfônica em um nível e em outro, ela ganha uma sintaxe que concomitantemente ganha uma outra realidade. Os fluxos intensivos são os agentes que quebram e produzem novas sintaxes. Este é o nó górdio da poesia. Ela nasce de ritornellos presentes. Não podemos confundir ritornellos com o passado cronológico, pois ele está em um perpétuo movimento de atualização. Portanto, memória não é o passado. É o presente em outro registro, pois se trata de uma composição/articulação dos ritmos às palavras. O mergulho no furo do futuro é a possibilidade que o sujeito desejante tem de navegar pelos fluxos, pelos buracos dos caminhos de minhocas que aproximam distâncias aparentemente impossíveis na dimensão do tempo cronológico. Para nos acercarmos um pouco mais dessas possibilidades de pensarmos em outro tempo além do cronológico temos que mergulhar em algumas expressões do conceito de desdobramentos. Na concepção de desdobramentos, o imanente e o transcendente não estão em oposição, pois fazem parte de um mesmo movimento. Assim como o imanente e o transcendente fazem parte de um mesmo movimento pulsional, as dimensões dentro e fora, os antagonismos e complementaridades não são conjuntos separados. Com a criação desse espaço/tempo poético em perene desdobramento movido pelas intensidades pulsionais, temos a possibilidade de pensar a criação poética no movimento e nos fluxos de intensidade. As intensidades podem ser caóticas ou rítmicas. Têm sempre a possibilidade de se atualizarem, ou seja, de sair da condição de potencial e ganhar atualização. Isso é o núcleo do que penso sobre criação poética. A poética é a possibilidade do sujeito se articular com uma outra possibilidade do tempo. Esta é a forma do tempo dos desdobramentos que encurtam distâncias no universo associativo, possibilitando aos que a escutam, uma poesia saltar através das eras e concomitantemente não sair do presente. Para finalizar, gostaria de colocar um poema do poeta catalão Joan Brossa, que acredito vem a condensar toda a minha fala de hoje, e que fala por si só:

Poesia é um jogo em que sob uma realidade aparente aparece outra de repente

* Texto apresentado em maio de 2017 no RAIAS POÉTICAS DE FAMALICÃO em Portugal.

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