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A "estrangeiridade" - Quando a língua (não) é uma questão


Quando decidi ir para o Courtil eu estava em um momento em que queria arriscar. Não um arriscar inconsequente, daqueles que você se joga na piscina vazia. Mas um arriscar sair da minha zona de conforto, da minha neurose, para vivenciar algo inusitado: trabalhar com a psicose em uma instituição belga de orientação lacaniana. Quanto informação! Quanta novidade! Desde da psicose até o “lacanês” me deixavam apreensiva e ao mesmo tempo muito curiosa. São dois temas que começaram a me instigar bastante de um tempo para cá. Mas acho que essa temática vai ficar para outra hora. Agora, sinceramente, o que estava mais me angustiando e, confesso, tirando meu sono, era a questão da língua. Ao pensar que eu teria que trabalhar somente em francês, me relacionar, fazer supervisão e participar das reuniões e seminários, essa língua tornou-se para mim um “estranho familiar”: algo que eu conhecia, que não era novo, mas me causava um certo estranhamento pensar que teria que usá-la como primeira língua durante 3 meses.

Acho importante dizer que o Courtil é uma instituição que recebe crianças e jovens com importantes dificuldades psíquicas, alguns graves, outros mais organizados, mas todos com uma questão importante no laço social, ou seja, com uma grande dificuldade de se inserir na cultura. O que coloca um sujeito na cultura é a linguagem, justamente o que fazia trava e limitava a relação destas crianças e adolescentes com o Outro e que, coincidência ou não, eu sentia como uma limitação e uma trava para mim em estar entre eles e exercer meu trabalho como estagiária.

Fui trabalhar em um grupo de pré-adolescentes em que o menor tinha 8 anos de idade. A maioria era francesa e os outro profissionais da equipe (chamados de “intervenants”) eram belgas. Dentre outras coisas o que eles tinham em comum era língua, o francês. E eu me perguntava qual seria meu lugar dentro de uma dinâmica já estabelecida e como conseguir fazer vínculo e laço com estes jovens. Eu me cobrava porque achava que tinha que falar um francês perfeito e fazer grandes intervenções. Tanta cobrança me gerava uma angústia muito grande que eu acabava me silenciando. Procurava falar o mínimo possível porque tinha medo. Medo de falar errado, de ser “a brasileira que não sabe falar francês”. Percebia que os jovens não me solicitavam ou me chamavam para coisas “tolas”, como abrir uma porta ou me perguntar as horas. E foi neste momento que veio outra fantasia: a da estrangeira.

Comecei a ter a fantasia paranoica de que os jovens não se aproximavam muito de mim porque eu era “estrangeira”. Que significante pesado! Quanta coisa ele carrega! Quando penso em “estrangeiro”, logo me vem uma associação com algo que está “de fora” e, fazendo parte da cadeia de fantasias paranoicas, eu me sentia de fora e acabava entrando em um ciclo vicioso: eu sentia que eles não se aproximavam de mim pois eu era estrangeira, mas eu não também não me aproximava porque tinha receio de falar. Essa conta não fecha, certo? Percebendo que isto estava se tornando uma temática central para mim, levei o assunto para a minha supervisão individual (como estagiária, eu fazia uma supervisão individual e semanal com uma psicanalista da minha equipe). Tentei expor um pouco da minha angústia em relação à língua e ao fato de me sentir de fora das atividades dos jovens, insistindo que aquilo estava acontecendo porque eu era estrangeira, esperando que minha supervisora pudesse me dar alguma dica de como fazer entrada, ou mesmo me acalmar dizendo: “não se preocupe, querida, seu francês vai melhorar”. Mas claramente isso não aconteceu, e eu sabia que não ia acontecer. Ela não me deu nenhuma dica prática e nem exerceu um “holding”, me acolhendo. Ela simplesmente me olhou e disse: “Marcela, para um psicótico todo mundo é estrangeiro”. Aquilo me tocou de uma forma que eu lembro até da forma que ela me disse, como se fosse algo óbvio. Essa frase ficou registrada dentro de mim que sai da supervisão pensando nela. Uma frase simples, mas muito carregada de significados e sentidos.

Se para um psicótico todo mundo é estrangeiro, então eu tinha parte nisso e, ao mesmo tempo, não tinha. Isso pode começar a desmistificar um pouco minha fantasia paranoica e narcisista de que os jovens não se aproximavam de MIM porque EU sou estrangeira e porque EU não domino o francês. Ao mesmo tempo, era algo inegável que eu era estrangeira, era algo do real e do concreto e, então pensei, como a minha “estrangeiridade” poderia operar ao meu favor. E foi neste momento que tomei a decisão de falar o meu francês, que era diferente do francês deles. Um francês com erros e com sotaque, de sentar perto e perguntar como jogava um determinado jogo e tentar entender as regras, de poder dizer “não entendi” quando realmente não entendia uma palavra, de poder propor algo e às vezes ouvir um “não quero”, de poder responder perguntas e curiosidades sobre o Brasil e perguntar como era para eles em seu país.

É claro que nem tudo ocorreu de uma forma tão linear desta forma. Tive muitos imprevistos e muitas situações difíceis, como administrar brigas e crises entre os jovens, momentos estes que parecia que minha cabeça ficava vazia e não me vinha nenhuma palavra em francês para dizer e intervir. Agora escrevendo, penso nestes momentos, assim como muitos outros, em que me deparava com um limite, com uma falta, com a minha castração. Eu não daria conta de tudo. Porém, poderia tentar aprender com a situação, observando os intervenants, e também criar meus próprios recursos. Eu aprendi, na prática, no acontecimento, como, na minha “estrangeiridade” eu poderia fazer laço e intervir. Explico brevemente:

Um garoto de 11 anos, esquizofrênico e com uma paranóia muito acentuada, foi um dos que mais me marcou neste período de estágio e com quem tive um vínculo marcante. Ele era um garoto muito nervoso, na grande maioria do tempo estava agitado e quase sempre respondia de forma agressiva aos intervenants e a mim. Além disso, para ele não existia um limite entre seu corpo e o corpo do outro, o que o impelia a fazer cócegas em mim, em me apertar e mexer nos meus cabelos de forma bruta e invasiva. Mesmo dentro deste cenário, ele tinha momentos em que era agradável: me pedia para ficar com ele no computador e para ir com ele ao mercado. Não quero me alongar muito nestes detalhes, mas onde quero chegar é no ponto que ele falava com muito orgulho de que a origem de seu pai era italiana e que, portanto, ele era italiano também, chegando, em certo momento, a me chamar para jogar pebolin dizendo: “o Brasil contra a Itália”. Acredito que um fio para uma transferência se estabelecer foi justamente a origem, o estrangeiro. Algo da “estrangeiridade” fez laço para este garoto e também para mim. Como descartar o inconsciente neste momento?

O que quero dizer é que neste período breve de 3 meses pude vivenciar que o vínculo e a transferência vão muito além do verbal, se eu falo ou não francês. É algo que transcende o dito, passando pelo inconsciente e pela força da transferência. Não estou querendo menosprezar a importância da língua, mas penso que nestes casos mais graves existem outros elementos em jogo que podem ajudar no laço e na promoção do encontro, no sentido terapêutico.

Acho bonito pensar que, no fim, eu pude brincar com a minha “estrangeiridade” sem necessariamente encará-la como uma falha, mas como algo que me limitava em certos aspectos e, ao mesmo tempo, me concedia tantas outras coisas, podendo me dar o direito de intervir, arriscar e criar junto dos jovens e me surpreender com o que seria experienciado naquele momento.

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