No último sábado participamos de uma roda de conversa a convite da Confraria das Lagartixas, marcando o primeiro evento aberto da A Casinha Frida. O tema desse encontro foi o “Outro lado da maternidade”, tendo como disparadores o filme “Tully” e o conto de Alice Munro, “O sonho de mamãe”. Foi uma conversa sensível sobre o que é a maternidade e o que ela representa para cada um, o que rendeu muitas trocas e reflexões, dando luz a questões importantes e essenciais no que tange a relação de uma mãe com seu bebê, como o fato de que, o que marca esta relação é a singularidade e o percurso que cada dupla irá realizar. Sendo, desta forma, algo de uma construção de mão dupla do que algo biológico e pré-estabelecido.
Por conta disso, decidimos compartilhar pequenos textos, escritos individualmente por nós, que foram norteadores em nossa fala no evento e de como cada uma pode compreender e refletir, por meio da sensibilidade da arte do filme e do conto.
Um olhar sobre o Conto “O sonho de mamãe” e o filme Tully, por Carla Belintani
A constituição do corpo de um bebê depende do movimento psíquico de circulação de libido que se atualiza no laço com o outro. O objeto voz invoca esse corpinho inicialmente desfragmentado do bebê para uma organização simbólica.
No texto de Inês Catão, “O Corpo como resposta à invocação da mãe” discorre sobre o bebê que se permite alienar à musicalidade da mãe e a partir desse encontro costura o campo da linguagem ao real do corpo da criança ou seja, a mãe fala com ele e para ele. Simultaneamente a mãe direciona e nomeia o desejo do seu bebê. Para que esse processo aconteça, é preciso que o bebê também participe se implicando nessa relação. Por isso se parte de uma relação dual, entre o bebê e sua mãe para criarem juntos essa musicalidade do encontro.
A clínica precoce com bebês, se busca escutar essa musicalidade entre a mãe e seu bebê. Compreender e facilitar como se constitui esse ritmo.
Victor Guerra, no seu artigo “O ritmo na vida psíquica: diálogos entre psicanálise e arte” relata que o ritmo é o primeiro organizador psíquico, como a palavra. São os vasos comunicantes que se unem em onda rítmica entre o sentir e o pensar. O que se observa nessa relação, mais do que o conteúdo do que está sendo dito é a sensorialidade e o ritmo das palavras, se referindo ao psicanalista francês René Roussillon. O processo de subjetivação segundo Guerra, acontece nesse balanceio rítmico. Que já estava presente no texto de Freud com o “Fort da”: momentos de elaborar a perda e oferecer sequência na continuidade. O ritmo livra do caos inicial para uma organização temporal, uma abertura para o outro.
No conto “O Sonho de Mamãe” de Alice Munro e no filme “Tully” encontramos mães à beira de um colapso inicial por conta desse desencontro com seu bebê. Longe de ser uma interpretação analítica da produção fictícia, mas apenas alguns apontamentos que o conto e o filme me mobilizaram: a ritmicidade do encontro com a presença musical.
A música está presente tanto no violino de Jill quanto na última cena do filme em que Tully se “conecta” com seu marido por meio do “fio de música”. É a musicalidade do encontro que alivia a angústia, após o caos inicial de desamparo. A mãe revisita sua própria infância na maternidade, por isso é fundamental que haja espaço para o desencontro e ambivalência ultrapassando o conceito idealizado da maternidade perfeita. Há uma criação conjunta do ritmo das famílias a partir do momento em que o mal estar tem lugar nas relações. A partir dessa abertura, uma nova travessia se inicia, a entrada do terceiro que organiza e caminha para a direção de uma separação. Citando Guerra “são necessários três para que dois tenham a ilusão de um.”
Um olhar sobre o Conto “O sonho de mamãe” e o filme Tully, por Fabiana Domingues
“Ao falarmos sobre maternidade falamos de uma dupla, mãe-bebê. O conto de Alice Munro e o filme Tully nos permitem uma reflexão interessante, pois contemplam os dois lados dessa dupla. A figura do bebê que aparece mais apagada no filme Tully, aparece tão atuante no conto de Alice Munro. Apesar de muitas vezes tomarmos o bebê, principalmente o recém-nascido, como um ser totalmente passivo diante do outro que o toma como objeto para constituí-lo, o conto joga luz a essa atividade com a qual o bebê desde muito cedo entra na relação com a mãe. Fica claro que quando nasce um bebê não necessariamente nasce uma mãe e vice-versa. Esse nascimento não é biológico e muito menos concomitante. Trata-se de um nascimento simbólico, repleto de significações que atravessam os sujeitos às suas revelias. É um incessante construir-se, na relação e na singularidade.
O “ser mãe” envolve a própria mãe enquanto dupla nos seus primórdios psíquicos. Seu nascimento então começa lá, muito antes dela poder circular em novas duplas, no futuro como mãe. Cai por terra a ideia de instinto materno, este não está lá desde sempre. Isso nos salva, pois se assim fosse, sua ausência seria falha genética ou qualquer coisa do tipo e não é aí que se localiza a questão. É no encontro com o outro que esse laço se faz, que se tece, um incessante construir-se bem marcado no conto e no filme. Tully tem em seu delírio uma tentativa de cura para aquilo que vinha claudicando com seu terceiro filho. Terceiro? Ela disse algumas vezes. Não o incluía nesse lugar, mas é a partir de um delírio que ela faz as amarras que haviam se soltado, uma saída criativa que tem função terapêutica. Já Jill aparece muito apagada nesse lugar, é Iona que nasce como mãe para esse bebê. Porém, é quando Iona se ausenta em uma viagem que se abre um espaço na dupla que havia se formado. Uma hiância que não é só vazio, tem contorno, é abertura, abertura para o novo. A possibilidade de morte do bebê coloca mãe e filha num processo de renascimento, dessa vez simbólico. A partir de uma filiação que a filha faz, ali onde ela toma a mãe no lugar materno e a mãe a toma como filha, é que ambas renascem, e o bebê agora como a bebê. O feminino se inaugura. Impossível não citar Simone de Beauvoir que coloca tão brilhantemente a questão do feminino em sua frase “Não se nasce mulher, torna-se mulher”, marcado nesse processo de forma bonita através de uma narrativa, tão singular a cada sujeito sobre o seu “tornar-se”. Assim como o feminino o “tornar-se” mãe, não se nasce, torna-se. Não é algo marcado pela biologia e se faz em cada encontro que aquela dupla pode fazer. Tully é mãe de três, mas é algo na relação com cada filho que a atravessa de forma particular.
O que as duas peças (conto e filme) nos trazem, entre outras, é a questão do avesso da maternidade, a não plenitude, algo que envolve muito mais os furos que essa experiência nos coloca do que as obturações que se fecham, que completam o ser.
As dores, os desencontros, os desencaixes fazem mais aberturas que fechamentos, ali onde a falta aparece, por mais dor que possa surgir, abre-se espaço para a criação, para o deslocar-se, para o constituir-se, processo tão vital quanto a vida propriamente dita.”
Um olhar sobre o Conto “O sonho de mamãe” e o filme Tully, por Marcela Assef
"O nascimento de um bebê traz consigo, na maioria das vezes, um momento de alegria e comoção. Mesmo antes, no período da gestação, o bebê já tem seu lugar pré concebido: como irá se chamar, com quem irá parecer, será que vai ter cabelo escuros? E os olhos, serão como os da avó materna ou paterna? As fantasias e expectativas frente ao pequeno sujeito são esperadas e completamente saudáveis, pois são importantes para circunscrever o bebê dentro de uma dinâmica familiar e numa filiação. Ele precisa ser contado para, posteriormente, poder se contar. O pediatra e psicanalista inglês Donald Winnicott chamou de "loucura materna" este período que acomete as mães logo depois do nascimento de seus filhos em que elas parecem fazer uma unidade com o bebê e dedicar-se exclusivamente a ele. Parece tão fácil e mágico...a gestação, o bebê que nasce saudável e uma mãe totalmente disposta para recebe-lo e pronta para cuidar de todas as suas necessidades. Mas, será que de fato esse sentimento de completude e plenitude acomete todas as mulheres? O que implica, de fato, a chegada de um bebê na vida de uma mulher?
Não, não estou aqui para colocar em cheque o amor das mães por seus filhos, porém me parece difícil pensar na chegada de um bebê sem pensar em mudanças e adaptações. E, pensando nestas duas palavras, logo me vem à mente perdas e medos.
O bebê precisa ser acolhido. Mas quem vai acolher sua mãe? Pensando nisso, o conto de Alice Munro e o filme "Tully" retratam de uma forma sensível os desencontros de duas mães com seus bebês e a construção do laço e da relação. Jill (do conto) e Marlo (do filme), se fossem vistas por um olhar mais racional e julgador, seriam tidas como duas mães "desnaturadas". Jill não sabe como acalmar seu bebê, delegando seus cuidados à cunhada. Marlo está muito desorganizada e decide chamar uma babá noturna para tomar conta de sua filha. Para ambas, se encontrar com seu bebê foi se encontrar com um estranho, com um não saber, com um vazio. De certa forma, elas se sentiram desamparadas como seus bebês.
É interessante pensar que a história do conto é a partir do ponto de vista do bebê, o que retrata como um bebê também pode ser ativo dentro da relação e que a construção da relação se dá através das trocas que ele faz com o outro. Tanto para Jill quanto para Marlo, construir uma relação com seu bebê parecia algo muito difícil. Estar disponível para qualquer relação exige uma disponibilidade interna e um investimento, o que para ambas, naquele momento, estava complicado, o que levanta uma outra questão é em que contexto se dá a chegada de um bebê e o que estava acontecendo na vida da mulher naquele momento.
Com o desenrolar das histórias vai ficando claro, entre o caos que permeia a relação, o desabrochar da maternidade. De certa forma Jill e Marlo, no auge de seu desespero, criam soluções que podem ser vistas como não saudáveis: Jill dá remédio para sua filha dormir e Marlo alucina com uma babá. O que chamo do desabrochar da maternidade é que, ao final, são elas que sabem sobre seu bebê. Jill, tão alheia aos cuidados de seu bebê, é quem sabe que ele não está morto. Marlo é Tully, ela mesma mais jovem, que não apenas cuida de seu bebê, mas que também tem um saber sobre ele.
Traçando um paralelo entre as duas histórias, o que elas contam é como a maternidade não é algo que nasce junto com um bebê, mas sim um processo, um caminho denso e individual realizado por cada mulher."
Tivemos o privilégio de conhecer a Ligia Lamana Batochio, idealizadora do projeto Abraça Infância que oferece escuta e informações sobre a primeira infância de forma sensível e acolhedora. Reencontramos a amiga e curadora de arte Adriana Palma para pensarmos juntas em novas parcerias.
Nosso agradecimento especial a todos que habitaram nossa Casinha na primeira abertura de portas. Que seja o início de novas reflexões, olhares e diferentes trocas sobre a infância!