Atravessar.
É preciso superar esses 180 km, todas as subalternidades, os medos e as fomes.
Andando, os pensamentos voam. Muitas são as travessias de estar viva. Do caminho traçado pelo corpo materno aos tantos percorridos para chegarmos aqui: partos e rios. É preciso driblar as mortes e inventar sorrisos.
O que buscamos nesses gerais? O sertão de Rosa é verde e cheio de pássaros. Os buritis ainda existem. Veredas resistem, apesar dos mares de eucaliptos. Sobrevive a que ele achou a mais bela na sua viagem de 1952, que refazemos agora. Ao redor, a terra vermelha. O sol quente.
Essa terra é a mesma das vilas de lembranças amigas. Vermelhão igual ao que encardia os pés das crianças descalças e as roupas que a mãe insistia em lavar. Poeirão que não podia sujar os livros, protegidos pelo pai na geladeira da casa sem eletricidade, nem armários. O sertão é lá? O sertão é em todo lugar.
No caminho de agora mulheres nos contaram estórias em cantos, contos e bordados. Também trouxeram comida, água, frutas e a marcação do caminho. Ave Mônica! A força nasce é desses corpos. Agora e sempre. Amém.
Em igrejinhas recebemos mercês: palavras e abrigo. Na noite mais fria, foi sob o teto de uma que dormimos todos juntos. Quem anda pelo desfiladeiro, não escorrega porque sabe que o caminho é perigoso. Mesmo quando poderosos cismam em marcar lugares até no cemitério, a Vida vem e mistura tudo e todos. São os sertões.
No trecho mais difícil, o morro estava sempre ali, um triângulo a guiar a comitiva de Pedro Orósio e a nossa. Ainda existem os que ouvem o recado? O que o morro está dizendo? Cadê a música para facilitar a compreensão? No alto dele, vemos o sol nascer com todos seus vermelhos, amarelos e azuis, ao sabor de quitandas e queimadinha: o amor em Minas vem em forma de comida. Em roda, como condiz a uma democracia, de fato, conjecturamos com o professor alemão apaixonado por essas terras. A fazenda de Riobaldo é aqui. Estoura luz, mesmo que ainda não saibamos o que fazer com tanto eucalipto virando carvão, com uma nação que dilacera seu povo, em nome de um progresso que não é para todos. A revolução virá pelo trabalho? Pela superação do trabalho? Dos fins das alienações, amém! É preciso parar de apanhar e morrer por querer sanar as fomes. O canto de trabalho das Guaianas ainda está vivo. Com bolhas e fascites nos pés, seguimos. Toda travessia é um entregar-se e ultrapassar dores.
Na próxima parada, temos tempo para lavar as roupas e comer uma boa refeição no almoço: galinha, lombo, tropeiro e doce de leite. Nossas rezas, escritas por ele, cruzaram os quartos sem portas: As margens da alegria, A terceira margem do rio, A menina de lá... Qual era mesmo o Recado do Morro? O que desejava Augusto Matraga? Luas de Mel para renascer, dessa vez, em nossa voz, o grande Zé Maria em sua estória preferida, a do velho fazendeiro se bis-apaixonando pela Sá Maria Andreeesa. Teria vivido mais o contador de estória se não tivesse ficado tanto tempo esperando atendimento? O coração aperta e a lágrima salta. Esses sertões, sem veredas.
Em todo o percurso, a companhia do Peregrino, um cãozinho preto, espevitado, louco por andarilhar, daí a alcunha recebida. Adotado por todos do grupo, quase nos paralisou de susto, quando tombou depois de um mata-burro, já pra lá de dois terços do caminho. Seu pulmãozinho não aguentou tanta corrida e passou a exigir um descanso. Seguiu até o final conosco, mas a partir do incidente, no camarote da kombi de um dos nossos guias. Nesse osbim, o mestre carregava nossas mochilas e uma doçura do tamanho do sertão, que de tempos em tempos ofertava em forma de estórias, cachacinha, café e doces. Ele não nos deixou esquecer do Pretinho (Deusaluz – Deus é luz? Deus dá luz?) desaparecido naquelas terras há um ano, depois de comer 15 limões e ficar parado diante de um muro. Será que ele ouviu algum recado do morro? Por onde anda? Ele sozinho pelos sertões. Viver é mesmo tão perigoso. Também nos lembrou dos recados, muitas vezes difíceis de entender, das assombrações e de Nininha pintado em um de seus quadros. Para ele, o sertão da cidade grande é o mais cruel de todos, ao empurrar para os cruzamentos das ruas movimentadas, tantas pessoas sonhosas com melhores dias que só encontram na multidão sons, fúrias e panfletos de propaganda. Carece de ter coragem para atravessar. E por que não fundar um Minifúndio do Professor? Seja o do século passado na cidade mineira, seja o com família eleita, seja sempre o dos sorrisos abertos aos seres de paz: todos os peregrinos de qualquer espécie. É em seu lar, com a amada, que o cãozinho andarilho escolheu para viver.
A passagem por uma das cidades do percurso é rápida. Tempo de distrações, artesanato, pão de canela, rapadura, gel de sebo de carneiro/arnica/copaíba/e outros matos, cerveja no buteco e o papo divertido de um dos companheiros. É preciso ver além, para fazer graça com a vida. Mas os dias nos campos, nos fizeram estranhar os carros e as luzes. Logo voltamos para a estrada de terra. O destino se aproxima. A última parada é na fazenda onde o próprio escritor dormiu. Lindos, a mesa ampla e os olhos iluminados dos que estão próximos de cumprir a meta. Mais um dia: chegamos. Coragem e medo andam juntinhos e é a primeira que nos leva a atravessar e enxergar Djanira, a filha-flor em todos os campos do sertão.
Na cidade do escritor ouvimos mais estórias. A filha e a mãe de Sorôco ainda vivem, mas o trem com grades para Barbacena não. Não podemos deixar que as prisões retornem. Na loja que não vende nenhum objeto é sempre tempo para estórias, encadeadas como nascentes que formam um São Francisco de vidas. Como morreu o jagunço? De perfuração de tiro? Arrebatado por marimbondos? E gente morre de um jeito só? É preciso inventar as vidas e as mortes. Nossos sertões.
Volto para casa com o sabor de paçoca de carne seca e amendoim na boca e a sensação de que quando escutarmos todos os Brasis, em um grande círculo, o caminho da liberdade estará pavimentado. Sem pactos diabólicos que dividam a nação entre senhores e serviçais. Nem idealizações e esoterismos para disfarçar as opressões. Outra gramática inventando-se: o querer bem a tudo que respira como base de toda ação humana. Daí, enfim, a Justiça, o prazer e o encantamento em tudo que nossos corações mereçam viver. No Caminho há Rosas. Nosso Mutum ainda mais bonito.
Este é um relato da viagem realizada em maio de 2019 com um grupo de peregrinos que buscou refazer partes do trajeto percorrido por Guimarães Rosa em viagem de 1952, acompanhando uma boiada pelo sertão mineiro. Do percurso, o escritor escreveu 11 caderninhos e usou esse material para a invenção do clássico Grande sertão: veredas, dentre outras estórias.