Onde mora o Brasil? Sim, onde dorme nosso país? Onde deita a cabeça e descansa a salvo do perigo? Quem engancha as mãos em seus cabelos e lhe carinha os sonhos? Quem lhe nomeia o choro?
Abaixo para amarrar o cadarço. Estou só, no meio da estrada. Me assusto com a ausência completa de movimento. O mato alto, intacto. Nenhuma folha se move um centímetro sequer. O Sol sobra indecente sem pedir licença para a sua exuberância.
Olho para minha pele e vejo a nascente de um rio: a água brota em meus poros. Não tenho tempo de chover: evaporo. Tudo é silêncio. A vastidão amarela. O sertão é lá e eu estou dentro dele: aqui.
Caminho sozinha por curiosidade. Com quinze anos de idade me assustei lendo uma história. Deitada em minha cama, os olhos no teto, o livro pousado aberto em meu peito, percebi o irreversível do amor. Conversa de Bois - o conto que tornou visível para mim o infinito dos afetos. Levantei-me e
-Pai, esse Guimarães Rosa… Ele tirou os óculos estupefato: e você lá tem idade para tecer comentários literários? Mas não resistiu a sua vontade de ensinar:
-Tico, o Brasil… Temos aqui o mais bonito do mundo. Não nos falta nada. Sorri.
-Pai. Eu quero ir lá. No sertão.
Dessa vez ele não suportou. Minha filha não pode tomar tanto sol, não pode conhecer homens brutos, caminhar entre espinhos! Até se levantou e empolou a voz:
-Você sabe o que é um sertanejo?
-Você sabe, pai?
-Você se lembra que a minha família é mineira. Bom... Uma vez eu e papai tivemos que subir ao norte para resolver uma questão. No fusca. Na estrada. De terra, cortando as fazendas e o nada. Um sujeito apareceu vindo de lugar nenhum.
Fez sinal. Paramos e ele subiu, queria carona. Eu o olhei por três horas ininterruptas.
Ele nunca abriu a boca, nem desviou o olhar. Tinha entre 16 e 40 anos. Podia estar doente ou vivo. Ele era um sertanejo. Você nunca vai acessá-los.
Por que os sertanejos passaram a despertar em mim essa curiosidade? Talvez seja a honestidade da pele, um couro que revela as marcas da vida. Tudo se passa longe demais do coração de um sertanejo. Aquela conversa ocorreu na metade da minha vida. Hoje sou o dobro de gente e estou aqui. Meus passos ressoam a terra quente, espirram pedrinhas delicadas que são assimiladas pelos miúdos dos meus pelos. A imobilidade do vento faz meu sopro soar único. A terra me inunda como água.
Decidi vir conhecer o Brasil por dentro. Aqui em cima estamos mais perto dos dramas e dos nomes das pessoas que em São Paulo trabalham entregando panfletos nos semáforos. A poeira de Minas Gerais é brilhante de cristal. Nosso companheiro que dirige o onsbinho onibuzinho que carrega nossas mochilas anda olhando para o chão. Explica:
-É que preciso levar um presente para o meu amor. Se eu não levar pra ela uma pedra bonita, porque raios ela vai me deixar vir com com vocês?
A estrada é de terra, seca, às vezes rachada. O entorno ainda é verde. Mas de um verde funebrilhos de eucaliptos. Plantações imensas de repetitivas árvores idênticas, cultivadas para serem queimadas vivas e resultarem em carvão para as mineradoras. E o Gerais sempre a alimentar as Minas.
Um tucano ainda voa, um macaco ainda salta. Uma saudade ainda bate. Saudades do quê, quando procuro o que sonhei? Em mim sempre houve essa vontade besta de achar o começo da gente. Eu decidi caminhar 180 quilômetros para arrancar tempo do chão. Para me lembrar que a beleza de Guimarães sempre esteve na feiúra do mundo e paixão do humano. Estou aqui a refazer a pé o que o escritor fez a cavalo, mais precisamente em uma mula, em 1952. Ele, nascido um pouco sertanejo, um tanto comerciante, um cadinho doutor e um bocado poeta, se meteu a acompanhar uma boiada por dez dias. Desde aquele dia
em meu quarto, com o livro amarelado e um pouco desfalecido, cheia de susto pelas palavras que corriam me acordando por dentro, desde então eu quis estar aqui.
Sempre que chego por essas bandas me vem uma vontade curiosa de acreditar em Deus. Ah, aqui me dá saudades de juntar as mãos, cruzar os dedos, dobrar os joelhos e sussurrar preces. De pequena eu queria ouvir as súplicas de cada um , até que entendi que eram como cantos de abelhas, sinalizações de pertencimento. Uma confissão de amor. Parei de acreditar em deus quando vi que era bonito demais uma reza. E quem reza somos nós, e não os céus. A beleza é terrena. Mas, aqui, o Sol é tão forte, os peitos tão tristes... a alegria é vislumbrar a morte. Que delicada ideia essa, de ter esperança na hora de morrer. Deus é mesmo uma questão de fé. E a existência das coisas não é algo que se prove.
Em pouco tempo alcanço meus companheiros de jornada. E eles, porque estão aqui nessa peregrinação? A gente de repente mistura sorrisos no calor compartilhado. O abandono do conforto é uma entrega aos segredos. E em nós não há espaço para assuntos pequenos. Queremos falar das nossas importâncias. Eu perdi minha filha e li que há uma flor com o nome dela no Grande Sertão. Vim aqui procurar por ela. Eu perdi minha esposa, quando meu filho tinha onze meses. O nome dela era o seu. Eu perdi dois irmãos que nasceram com uma doença sem cura; eu descobri que na minha família houveram judeus e nazistas; eu estou me separando do meu marido; eu queria ser escritor, cronista, mas os jornais não existem mais; e nós a trabalhar sem estudo, a ver nossos filhos expulsos das terras pelas máquinas, nós nos acreditamos pequenos. Djanira, você conhece essa flor? O nome dela era o seu... Pois não é assim a vida? Eu queria que houvesse um jeito de não ser a continuidade da minha família, será? Hoje a minha esperança está nos outros mundos, você acredita em ET’s? E você sabe que depois disso eu corri 217 quilômetros em 54 horas? Eu aprendi a dormir de pé! Mas nunca tiraram de nós esse hábito do café doce e da mesa farta!
Nós a chorar e a sonhar alto, muito sujos e muito juntos.
Depois de trinta e seis quilômetros, nossa primeira pausa. Os esportistas experientes estão surpresos.
- A média das peregrinações é de 20 a 25 km, isto é aqui está muito pesado!
Não havia nada antes. Depois de 20, 25 km caminhando encontramos apenas, terra, mato e sol. Não havia parada. Somos obrigados a caminhar mais para encontrar o único pouso em 70 km: uma igrejinha em Buritizinho. Dormimos dentro dela.
A minha chegada aqui, em Buritizinho, me faz estranhezas. Me sinto gripada, com dores nos ossos e preguiça do meu entorno. Me entristeço, eu vim de longe para achar essa gente que vive da roça a cuidar de uma igreja. Eu me calo em cansaço.
Deitada em um banco de madeira, me protejo da presença das pessoas. Sinto culpa pela minha arrogância. Vou sendo corroída por mau humor, joelhos que me parecem arrebentados. Nesse estado peço para fotografar a casa da família habitante daquele pedaço de mundo. As mulheres mais velhas riem-se tímidas e consentem. Começo a tirar fotos. As mais novas me olham com desprezo. Me envergonho. Não consigo me aproximar. Peço licença e vou me fechar na igreja.
Acordamos às quatro e meia para caminhar antes do Sol nascer e para pegá-lo menos rígido lá em cima. Escuto as histórias daquela boa gente. A filha mais nova chamava-se Mariana e antes dela havia a Última. Assim chamada porque haveria de ser a última! A Mariana veio e a fez penúltima. Os padres ali rezavam missa só de vez em quando. E tinha tempo aquele rancho...
-Menina, os padres andam difíceis para vir para esses lados...
-Os pastores vêm?
-É. Vêm.
Em Andrequicé, já tinha escutado: “Que Deus me Perdoe, mas é um sofrimento pra gente trazer o padre pra vir pra cá rezar uma missa... Ele nos pede tanta coisa!”. E aquela mulher, de olhos timidamente doces, com suas chaves nas mãos –parecia do mais sincero amor por deus ao sentir triste o abandono da Igreja por sua capelinha.
Desse modo, de igrejas evangélicas, eucaliptos e um pouco de mineração o sertão vai escorrendo... Meu celular não funciona há dias. Mas os jovens naquela igreja em Buritizinho não saíam do WhatsApp. Escutavam funk e o chamado “sertanejo universitário”. Percebi: os filhos do sertanejo são cowboys.
Hoje vemos o Sol nascer como um sussurro. A vegetação úmida da noite nos parece menos tímida. Andamos e as vacas se aproximam da cerca. Olhar o céu exibindo luzes cor-de-rosa anunciando a chegada do dia me fez sentir um abraço da vida. Me deu vontade de pedir perdão. Por algo sem nome e sem jeito. Encaro as vacas com medo e curiosidade. O silêncio se impõe novamente. Sorrio às minhas amigas. Trocamos olhares. Até que uma vaca começa a fazer xixi! O silêncio se rompe por uma cachoeira larga e longa. Me percebo ignorante: eu não tinha ideia de como uma vaca mijava! Seu mijo ininterrupto levanta fumaça em contato com a terra fria do amanhecer. Será que ela se envergonha? Ela muge, como se nos pedisse para desviar o olhar. Ando em frente e confesso a mim que a vaca, pobre vaca, não se envergonha, sou eu a envergonhada. Pobre menina, ai de mim, que puritana.
Damos mais alguns passos, quando ainda azul se anuncia um morro. Tão só que dá vontade de fazer um terremoto para lhe oferecer amigos. Lá na frente um de nós grita emocionado: “Estão ouvindo? É o Recado do Morro!”. É bonito demais, o Morro da Garça, um morro testemunha, o Morrão, um personagem do nosso Corpo de Baile. Ele nos acompanha com firmeza e confiança, soberano no sertão. Até parece um pássaro que voa baixo para nos lembrar de nossa falta de asas. Ou a Lua, estatelada nos céus, a correr atrás de nós brincalhona. Ele é tão morro que contém em si tudo isso.
Ontem eu era medo e pele. Hoje sou calma e joelhos. Ontem cheguei tão logo. Hoje me quero no vagar. Talvez não consiga dar todos os passos desses 35 novos quilômetros. Mas justo hoje, que o Morro nos aguarda?
A caminhada dura faz os eucaliptos bonitos. Meus amigos lá na frente sendo iluminados pelo sol cortado em feixes por essas árvores me faz pedir perdão ao sertão para admirar esses campos. Escapo e entro por dentre eles. Sou tão pequena, os troncos finos e longínquos, me reconciliam com minhas pernas magras. É um jeito de chegar aos céus. Mas o susto da beleza me alcança no grito de um Pequi aprisionado, amordaçado por essas cambetas de eucaliptos. Os Pequis, patrimônios do sertão estão proibidos de serem derrubados. Os latifundiários desmatam tudo, mas disfarçam deixando algumas dessas em pé para a gradearem com suas lenhas.
Olho para o Pequi. Deve ter ao menos vinte galhos, que por sua vez se subdividem em
dois ou três. Em cada galho conto em volta de dez curvas. É um caracol em direção ao céu. Não se impõe pela altura, mas, pela capacidade de mudar de direção. É uma verdadeira festa triste. Uma rebelião dentro de uma cela apertada. Me reconcilia com minha alma.
Uma amiga me aguardava. Contei a ela emocionada:
-Me inspira como resistência.
Meu joelho dói e me faz reclamar. Sinto falta de mais um bastão de caminhada. Sinto falta de mais exercícios para me prepararem. Porque não fui ao médico antes de vir? E conversamos. Compartilhamos detalhes esquecidos da vida, para encorajar os passos. Não aguento. Subo na combi onsbinho onibuzinho faltando dez quilômetros para a chegada no Morro da Garça. Me entristeço. O caminho é lindo. O Morro cada vez mais perto. Some e reaparece na caminhada. Como no conto... Chegamos.
Nesse dia eu sofro de inveja daqueles que chegam horas mais tarde, com loucura nos olhos e palavras escorrendo pela boca: “Foi o dia mais difícil! É o Liso do Sussuarão!”. Inveja e invisível sempre me soaram palavras estranhas, pois se eu as fosse inventar inventaria uma só para as duas coisas. Aquilo que não se pode ver: como objeto é inveja, como sujeito é invisível. Ou seja, depende do ponto de vista. E o que mais não depende? Sei também que ando esquecendo as palavras e me assustando com elas. Não sei mais como são escritas, nem pronunciadas. Isso vem acontecendo desde quando decidi escrever. É como se acabasse a tinta no dia em que eu decidisse pintar. Bom, o pai de um amigo uma vez gritou com ele quando ele lhe pediu “pai, me ensina a ser pintor?”. Saiu do ateliê e enfiou a mão na terra, arrancou um tufo de mato e o arrastou por uma folha de papel: coloridamente verde e marrom. Estava lindo o desenho. Exibiu ao jovem: “você acha que se ensina alguém a pintar?”. Talvez eu esteja nesse instante, pedindo a alguém que me ensine a escrever.
Será esse o meu recado do morro? Mas, sim! Eu esqueço as palavras! Foi preciso morrer para reconhecer que morro. No conto, a natureza acessa o humano pela loucura. E enquanto só os loucos a compartilham, a morte se aproxima. Foi o artista aquele que conseguiu escutar aos loucos e lhes proporcionar o encontro com as suas palavras. Fez-se o laço entre humanidade e natureza, em sua amarração louca e poética. A vida se fez mais próxima. Pois então, eu também morro. E saber disso com consistência é saborear a inveja que os deuses sentiam pela mortalidade dos homens. Perceber-se responsável pela própria existência é cair em um buraco estreito e fundo, que se alarga se acalmarmos o peito e se revela invertido, de ponta-cabeça, quando estamos quase nos estatelando no chão. É nossa escalada. O desamparo é a fraqueza nos joelhos, a liberdade é o oferecimento da mão ao outro. Objeto e sujeito do mesmo afeto. Pois então meu morro é minha vida, tão só, só minha, que só se é, em companhia.
E terá sido por amor que procuro o Brasil? Meu pai só sabia amar odiando. No dia 11 de setembro de 2001 eu o encontrei na frente da televisão comemorando: “Morram desgraçados!”. Lembro de seguir em frente para a mesa do almoço por constrangimento em olhá-lo nos olhos brilhantes. A minha mãe me explicou que haviam inocentes no prédio. E que haveria de ter um jeito que não fosse a morte para lidar com nossa vingança. Meu pai perdeu muitos amigos quando jovem. Minha mãe me ensinou que a morte de um jovem é sempre uma tragédia. Meu pai sempre encontrou na morte desses amigos um tiro dos Estados Unidos e na vida dos mesmos um sonho pelo Brasil. Minha mãe me explicava: “a ditadura lhe tirou muito...”. Estive perto quando explodiu a base de Alcântara. Eram seus amigos mais velhos. Ainda sonhadores. Ele dizia que conhecia os cálculos e que não poderia ter sido um acidente. Para disfarçar a tristeza ele ficou furioso. A minha mãe se sentava na rua com cada criança que lhe pedia dinheiro. Anotava os nomes, a escola, ligava para a prefeitura, ela realmente sentia que todos os problemas do Brasil eram seus. O que eu fiz com essas memórias dentro de mim? De que modo se misturaram e me constituíram? Por qual país morreram os amigos de meu pai? Em qual país nasceram as crianças de minha mãe? Os jovens sem medo, as crianças com fome, os sertanejos sem terra, em qual deles habita o Brasil? Sinto as linhas da fronteira de nosso mapa como veias de meu corpo que escoam a seiva de nossos pequis. Me fiz brasileira demais por amor. E não acho essa raiz perto de mim. Está longe, em cada brasileiro.