Jovem mulher na praia, Eduard Munch, 1896
A caminhada está longe do fim, mas a meta diária foi cumprida e eles já podem se recolher ao acampamento. Restam muitos dias de viagem e a caravana sabe que cada novo amanhecer será único. Por isso as pausas são reverenciadas. Talvez é o que diria o ponteiro grande, em seu quinquagésimo nono avanço, a relembrar que nada muda, mas tudo pode mudar. No segundo que inaugura o próximo minuto o movimento é idêntico, mas algo já mudou. Convenções engraçadas, pensou.
Ela se afasta um tanto, prossegue até um ponto onde pode observar o mar em silêncio e solidão. Ela caminha com o grupo, mas a caminhada é sua. Sozinha na encosta do morro, as vozes se diluindo no crepitar da fogueira, ela se posta diante da praia que agora está muitos metros abaixo de si.
A linha do horizonte está encoberta nesta hora da tarde. Mar e céu. Azulejados. Isso poderia assustá-la, ela conhece a sensação. Desta vez não, porém. A ausência de um horizonte visível pode acentuar a grandeza ao redor, reafirmando sua insignificância, mas há vantagens. Afinal, um limite nem sempre é direção. Às vezes é apenas limitante.
No fundo ela sabe que a linha do horizonte foi uma invenção dos olhos para lidar com o incontível. Ela já não viveu o bastante para constatar que este contorno, ainda que estivesse visível nesta hora do dia e neste ponto da caminhada, seria fictício? Quem há de traçar a fronteira senão ela? E ela há de se projetar adiante como onda, derramando-se na orla, esculpindo corais e transformando conchas em areia, que depois virarão novas conchas. Ela vai se derramar, é inevitável, ainda que, em seguida, precise do recolhimento. Retrair-se é curativo porque é um lembrete da intermitência da maré, seu ritmo e constância, em detrimento da imprevisibilidade. É a imprevisibilidade que mais a atemoriza.
Ela teme a abundância na maré cheia, seu transbordamento, quando um avanço muito intenso pode cobrir a copa das árvores, arrasar aldeias e se misturar às lágrimas dos feridos. Então ela lembra que embora não possa enfrentar seu tsunami de frente, já tem experiência para identificar a chegada e antecipar rotas de fuga.
E, além do mais, nesta altura da caminhada ela já percebeu que a maré cheia namora a lua, que também fica plena e tudo vira luz.
Ela já sabe que seus avanços podem servir à construção ou destruição, mas sempre, inevitavelmente, serão transformadores. Ela vai lidar com o imprevisível, o abundante, o avanço e o retraimento. A única tragédia intransponível seria o mar secar ou a viagem terminar. Sim, ela vai lidar com tudo. Amanhã. Hoje ainda não acabou, mas amanhã ainda vai chegar.
Feliz 2020!