Créditos da imagem: livro "O amor nos tempos do cólera" (Gabriel García Marquez, 1985)
A última semana foi intensa para o Brasil e para o mundo. Nos deparamos com algo inédito, com algo que mais parece um roteiro de filme, daqueles que não conseguimos desgrudar o olho da tela, mas que nos pegou de uma forma tão forte que para muitos “a ficha ainda não caiu”. Estranhamente (ou nem tanto) os últimos acontecimentos ligados ao COVID-19 me relembraram a um tema que eu já estava às voltas nos últimos tempos: o que se perde em um processo analítico?
Decidi, então, juntá-los. De forma gradativa, ao longo dos dias, as ruas foram ficando mais vazias, os restaurantes e outros comércios foram fechando, trabalhadores (os que podem) foram dispensados e as escolas começaram a fechar, deixando crianças e jovens em casa. Eu, enquanto analista, optei por continuar atendendo presencialmente apenas mais essa semana e propor aos pacientes que passássemos as sessões por vídeo a partir da próxima. Alguns me procuraram para saber como eu estava lidando neste momento, já pedindo atendimento à distância ou mantendo a sessão no consultório. Posso dizer, então, que tive as duas experiências. Na minha análise pessoal não foi diferente: fui normalmente nos dois dias de sessão e, a partir da próxima semana, meu divã passará a ser minha cama ou a cadeira do meu quarto.
Gostaria de compartilhar algo da minha experiência que me fez pensar neste texto que escrevo. No dia que fui para a minha análise e não vi a bandeja com água que estava lá há 6 anos e meio, somado ao fato de quando sai do meu consultório desliguei os aparelhos eletrônicos da tomada por não saber quando voltarei, me deu uma sensação de desamparo. É algo do real que invade e não temos como controlar. O desamparo, pelo meu ponto de vista, é por não termos uma dimensão de até quando viveremos neste cenário, se vamos nós ou alguém muito próximo (idoso ou não) contrair este vírus, a quarentena indeterminada, o trabalho, reunião com os amigos, eventos e congressos cancelados ou adiados até não se sabe quando.
Escutei de muitos pacientes o seguinte: “não sei o que fazer” e “não tem o que fazer”. Tanto o “não tem” quanto o “não sei”, expressam algo do primitivo, de um estranhamento diante de algo que nos tira o chão e nos invade um sentimento de impotência. De fato, estamos passando por um momento que nos toca em núcleos infantis de que, ao contrário do que pensamos, não podemos tudo e não sabemos de tudo. E isso dói, pois esbarra justamente na castração que nós, seres neuróticos, custamos a aceitar. Pois bem, não seria um dos caminhos de uma análise nos fazer lidar de uma forma menos tirânica com nossa própria castração? Digo isso do ponto de vista de que, estar em análise, é poder se dar conta de que perderemos posições subjetivas e verdades absolutas. Teremos que fazer muitos lutos (luto das fantasias que tínhamos, luto de relações) que serão doloridos e precisarão de um bom tempo para serem digeridos e acomodados dentro de nós. Ao mesmo tempo, ganharemos mais flexibilidade psíquica, uma nova forma de se colocar no mundo e nas relações, uma visão de mundo um pouco mais ampliada e nos daremos conta de que não poderemos tudo. Mas que terão outras tantas coisas que estarão ao nosso alcance. Isso é a castração, poder lidar de uma forma mais branda com o fato de que faremos o possível, mas não o impossível.
Neste momento difícil que estamos da história, vale lembrar que algo pode ser feito. A angústia também pode ser motor para transformações, ou seja, de movimento de vida frente a tantas notícias terríveis. Sustentar a angústia e seguir pode levar a processos criativos, como uma paciente que disse que pensou numa possibilidade para fazer suas sessões sem tanta interferência familiar, assim como outros estão se disponibilizando a ajudar aqueles que não podem sair de casa. O processo criativo também está levando a algo pouco presente nos dias de hoje: a solidariedade e a empatia com o outro. O COVID-19 parece que veio para nos tirar de um encapsulamento narcísico e mostrar que existe um mundo inteiro lá fora. Como disse Freud, a criança, na passagem pelo Complexo de Édipo, renuncia ao seu desejo incestuoso e ao seu narcisismo para ganhar o mundo. Não há ganhos sem perdas e não há perdas sem lutos. Estamos vivendo muitos lutos neste momento, o que implica que após a Era do COVID-19, não seremos mais os mesmos. O luto abre para novos caminhos, redirecionando a libido para reinvenções que, mesmo em um momento tão difícil quanto este, bifurcam em uma desaceleração do ritmo de vida, em um se debruçar mais em livros, filmes e artes, em contemplar o silêncio dentro de casa ou o aproveitar os momentos em família e, por fim, no resgate da solidariedade humana que há tempos estava esquecida.