Abaixo, o texto construído a muitas mãos a partir dos memoriais feitos para os participantes de nosso ritual do luto. O texto foi lido em um encontro virtual de finalização:
Um dia as janelas se restringiram às frestas porque o vento poderia trazer consigo o inesperado. Foi no mesmo dia em que as portas se fecharam para que o indesejado não se escamoteasse em meio às visitas. Mas não foi só. Os sapatos, tímidos, ficaram do lado de fora, para não invadir nossa sala com a poeira das calçadas, agora saudosas do nosso pisar.
A partir desse dia insólito o amor se provou com a separação e, o cuidado, no distanciamento. Esconder o semblante virou sinal de confiabilidade. O que era conhecido pareceu virar de ponta cabeça, mas, a bem da verdade, foi apenas retraído, encolhido e esmagado para dentro de quatro paredes. Nossa casa, um universo. Estudar, trabalhar, ensinar, amar, cozinhar, comer, dançar, exercitar-se, rir, chorar, conversar, verbos em todas as suas flexões, tentando conjugar uma muralha apta a proteger da doença, da morte e do medo de ambas. Medo.
Dentro desta muralha, acentuou-se a convivência dos familiares e a solidão dos sozinhos. As perdas nunca foram tão solitárias, impedidas ou prejudicadas que foram as despedidas. Neste contexto, lutos antigos foram reavivados, como feridas mal cicatrizadas.
Estariam sendo mal cicatrizados os lutos dos familiares de tantos que se foram, como Katia, Valdeci, Fabricio, Rafael, Maria da Gloria, Nero, Jose Espedito, Saulo, Ignez e Saulo? Afinal, se elaborar uma perda é tessitura, é ligar pontos na construção de um sentido, e se a presença de um outro, e se um abraço neste processo são quase fundamentais, tristes retalhos se costuram nesta pandemia!
E se fosse possível unir estes retalhos em uma colcha? E se fosse possível relembrar a estes familiares, recolhidos em suas muralhas, tecendo seus fragmentos de sentido, que a muralha vizinha pode estar abrigando outro enlutado empenhado na mesma costura?
Então seria possível imaginar Katia, que amava a praia, passeando pela Veneza de Rafael, na Kombi de Fabricio, sendo seguidos pelos latidos de Nero, enquanto Jose Espedito e Maria da Gloria conversam saboreando o pãozinho feito por Valdeci e Ignez e Saulo devorariam livros ao som do violão de seu filho Saulo.