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A "carta de pedra", luto e transmissão (comentários sobre o filme &quo


“Daigo: - Muito antigamente, antes dos humanos inventarem a escrita, eles buscavam uma pedra que representasse seus sentimentos, e a davam a outra pessoa. Quem recebia a pedra, percebia o que o outro sentia, pelo peso e pela textura. Por exemplo, a textura lisa significava uma índole pacífica, e a rugosa, uma preocupação com os outros.

Mika: - É uma história linda. De quem você ouviu?

Daigo: - De um velho homem.

Mika: - Então... é por isso que guarda aquela pedra grande em casa?

Daigo: - Sim, ganhei do meu pai.

Mika: - Eu não sabia.

Daigo: - “Vamos nos dar pedras todos os anos”, ele disse, apesar de aquela ter sido a única vez. Porcaria de pai!”

O filme “A partida” (2008), do diretor japonês Yojiro Takita, trata com singeleza o tema da morte, além de ensejar valiosas reflexões sobre o trabalho do luto. A obra foi premiada com o Oscar de melhor filme estrangeiro em 2009 e conta a história do músico Daigo de forma poética, acompanhada de uma sensível trilha sonora.


Muitos aspectos do filme poderiam ser mencionados por sua ressonância na teoria psicanalítica, como o papel dos rituais na simbolização da morte de um ente querido, o tabu da morte e o preconceito com quem trabalha na lida funerária, especificidades culturais da ritualística japonesa, dentre inúmeros outros.


No entanto, a partir da narrativa do filme, este texto procurará abordar o luto quando a partida do objeto foi brusca, impactando na transmissão das identificações.


Daigo toca violoncelo em uma orquestra, em Tóquio. Quando a orquestra é dissolvida por falta de público e patrocínio, ele perde o chão, já que tocar violoncelo profissionalmente era seu sonho desde criança, no qual investiu afetiva e financeiramente. Decide, então, voltar com a esposa Mika para sua cidade natal, Yamagata, nas montanhas. Este retorno é uma alegoria do profundo mergulho que Daigo passa a fazer em suas raízes. Ele se estabelece com a esposa na antiga cafeteria dos pais, que também funcionava como residência da família. Quando o pai abandona Daigo e sua mãe para viver com uma outra mulher, a mãe passa a administrar a cafeteria e parece nunca ter superado a perda do marido, guardando, por exemplo, todos os seus discos, embora nem apreciasse aquela música. É como se o tempo tivesse congelado. O domínio do instrumento musical lhe foi transmitido pelo pai, é uma herança que Daigo carrega de modo ambivalente. Ele sente raiva do pai pelo abandono, e, simultaneamente, cultiva o amor pela música, único canal possível de identificação.


Daigo encontra um anúncio de um trabalho para “auxiliar jornadas”. Supondo tratar-se de uma agência de turismo, chega à agência NK, onde, intrigado com três grandes caixões ornando o local, conhece “o chefe”, que imediatamente o contrata, sem ao menos olhar seu curriculumou trocarem duas palavras. Ele seria assistente do chefe até poder desempenhar sozinho a função, que consistia em acondicionamento do cadáver e sua colocação no caixão. Surpreso com a descrição do trabalho, Daigo mostra o anúncio, ao que o chefe responde ter se tratado de um erro de impressão, já que o correto seria “auxiliar uma partida serena”. O chefe insinua que ninguém nunca aparecia para ocupar a tal vaga fúnebre. Logo, o “ato falho” de impressão veio a calhar. Talvez jornada seja mesmo um conceito mais palatável e menos definitivo que partida.Daigo demonstra repulsa, mas o chefe o seduz com a oferta de um alto salário.


Ao voltar para casa, após este primeiro dia, mente para Mika acerca da natureza do emprego, nitidamente constrangido.


Sua primeira experiência no trabalho foi traumática, lidando com o cadáver de uma senhora idosa, já em adiantado estado de putrefação. O odor fétido, a visão do corpo deteriorado e ter de tocar nele o fazem vomitar. Ele não concebe voltar sem passar antes numa casa de banhos, tradicional no Japão, onde se esfrega freneticamente. Quer enxaguar o cheiro e as lembranças daquela vivência. Então volta para casa e toma a esposa com paixão, precisando tocar seu corpo VIVO.


Quando Mika descobre a verdade sobre seu trabalho sente humilhação e exige que peça demissão. Ele replica: “porque eu deveria sentir vergonha? Você vai morrer e eu também, todo mundo morre, a morte é natural!” O filme é competente para provar que é e não é. Sabemos, mas não aceitamos. Isso porque não existe a representação da morte no inconsciente. A esposa de Daigo sente nojo do marido por “tocar nos mortos”. Assim como ela, há pessoas que não querem “tocar na morte”, pois lidar com isso beira o insuportável e relembra a finitude, a decrepitude. De tão insuportável, Mika o abandona.


Um contraponto à recusa da morte é explorado na personagem do chefe quem, simbolicamente, em paralelo ao negócio fúnebre, se dedica a cultivar plantas. A sala em que toma chá parece uma estufa, um jardim-santuário onde ele observa a renovação da vida nas plantas que florescem. É nesta mesma sala que Daigo e o chefe mantém um dos diálogos mais interessantes do filme. Daigo chega para pedir demissão, mas o chefe o convida a almoçar. Oferece a Daigo glândula de baiacu: “Os vivos comem os vivos para sobreviver. E agora estamos aqui, comendo esta glândula de baiacu, melancolicamente.” Vale lembrar que baiacu é um peixe venenoso, letal, caso não seja preparado adequadamente, assim como a partida de um objeto só pode ser digerida após elaboração satisfatória. Uma partida apressada pode ser indigesta, ou até venenosa.


A conversa tem um efeito transformador no vínculo entre chefe e aprendiz e este último desiste da demissão. A cena age como um facilitador simbólico, permitindo que Daigo integre sua experiência com a morte, apropriando-se de suas escolhas. O emprego acidental se converte em convicção.


Quando a Daigo é dada a oportunidade de executar o ritual de acondicionamento pela primeira vez ele explica aos parentes da moça falecida que o procedimento visa garantir uma “partida serena”. Podemos observar o respeito, quase devoção à moça morta, sua manipulação delicada, ensaiada, com movimentos elegantes e coreografados. Ele toca o corpo inerte com a mesma sensibilidade e destreza com que maneja o violoncelo. Ele alisa o rosto morto. Parece um carinho. É de se concluir que muita gente viva passa a vida inteira sem experimentar um contato tão íntimo. A cena vai mostrando que este cuidado ao morto repercute nos vivos. Partida serena. Permanência serena.


A partir daí, o trabalho vai produzindo sentido em Daigo, que se surpreende com uma verdadeira vocação. Ele observa a utilidade e o efeito do ritual nos familiares, que se despedem do parente que partiu, concretizam sua morte, algo que ele nunca pôde fazer nem com sua mãe, que morreu quando ele estava fora da cidade, nem com seu pai, que os abandonou quando ele tinha apenas 6 anos.


Ele estreita o vínculo com o chefe, uma nova figura parental. Deixa-se cuidar, cuida. Aprende e identifica-se com ele. Isso vai permitindo que ele integre a música, herança paterna. Daigo toca o violoncelo desde o jardim da infância, porque seu pai o ensinou. Ele tenta manter esta herança, dedicando-se a tocar o instrumento em uma orquestra, mas a orquestra é dissolvida, ele até se sente aliviado, livre, vende o instrumento, porque “o celo de adulto é pesado”, mas não consegue abdicar totalmente da música, resgatando o celo da infância encontrado na casa da mãe. Recorre à música nos momentos significativos, quando por exemplo comemora o natal em um jantar em que ele, o chefe e a colega devoram pedaços de frango “melancolicamente”. Ele termina o jantar e toca o violoncelo para eles. Por meio de novas relações e trocas, ele vai podendo operar resgates.


Quando a esposa volta para ele e comunica que está grávida lhe propõe a pergunta: “Você poderia dizer ao seu filho, com orgulho, no que você trabalha?”


Neste ponto o filme tem uma reviravolta, uma senhora conhecida falece e a esposa tem a oportunidade de testemunhar o ritual de acondicionamento executado por Daigo. Emocionada, ela compreende finalmente o valor daquele trabalho e aceita a escolha do marido.


Entretanto, o momento nuclear do filme é quando Daigo caminha com Mika na margem do rio, toma nas mãos uma pedra e oferece a ela. Explica que antigamente, quando não havia escrita, as pessoas entregavam uma pedra aos outros para comunicar seus sentimentos. Quem recebesse esta “carta de pedra” compreenderia o que o outro estava sentindo, observando as características de peso e textura. Quando criança, seu pai havia lhe contado esta história, trocaram “cartas de pedra” com promessas de repetirem todos os anos. Então seu pai os abandonou. A transmissão foi interrompida.


Em qualquer fase da vida de um sujeito a morte ou o abandono parental é difícil, mas há momentos-chave no desenvolvimento em que rupturas e mortes podem ser devastadoras à construção da subjetividade. No caso de Daigo isso ocorreu durante a delicada travessia do complexo de Édipo, que tem seu ápice por volta dos cinco, seis anos de idade. É quando a criança se vê num trabalho psíquico de renunciar ao amor dos objetos parentais, introjeta-os, para identificar-se com eles. Esta ação psíquica ocasiona um retraimento da libido ao eu – o chamado narcisismo secundário –, sendo necessária à abertura de novas relações objetais. Nesta fase,a criança tem fantasias inconscientes de morte do pai para desposamento da mãe, masquando o pai realmente parte, isso pode provocar culpa, sentimentos de punição, além do evidente ressentimento, surgindo, então, a raiz da ambivalência. Quanto maior a ambivalência, mais complicado o processo do luto.


Essa separação do objeto é traumática por ter sido concreta, brusca e absoluta, devendo ter sido experimentada de forma violenta pelo menino. Não é à toa que o próprio Daigo vende seu instrumento, porque o celo de adulto era “pesado”, ele segue tocando o celo infantil.


Um trabalho de luto “bem resolvido” é quando se consegue carregar a pessoa perdida dentro de si, com um tanto de sofrimento modulável, suportável. Quando alguém morre ou parte é incorporado ou introjetado, a depender da condição psíquica do enlutado. Bons encontros consolidam bons narcisismos, permitindo saudáveis separações, na linha da introjeção. O filme abusa da oralidade para mostrar este argumento. Ao desfrutarem a glândula de baiacu, “comendo melancolicamente”, que outra coisa não é se não devorar o objeto perdido?


Quando é informado da morte do pai e o reencontra para as providências finais, não o reconhece, é um estranho, até que decide executar o ritual de acondicionamento e vê, guardada nas mãos do pai, a pedra que havia lhe dado quando criança. O pai guardou a pedra. Ele sente-se amado, isso reativa a herança, a transmissão. Ele finalmente recorda o rosto do pai, se reconcilia com a figura paterna introjetada de forma desastrada.


Ele então entrega a pedra ao filho, colocando-a na barriga da esposa. Agora ele já pode tornar-se pai. Isso porque, ao cuidar do corpo do pai, ele sai da posição infantil. Assegurando uma partida serena àquele, Daigo pôde, ao mesmo tempo, apostar numa permanência serena a si mesmo.


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