“não vou cortar a teia da própria vida feito ela minha mãe: o vocábulo é minha âncora”
Evandro Affonso Ferreira, “Minha mãe se matou sem dizer adeus”
“Elena”, documentário de Petra Costa, de 2012, é ganhador de prêmios, foi analisado em artigos científicos, discutido nos meios acadêmicos, além de ser uma obra precisa acerca do trabalho do luto, que é nosso foco de clínica e pesquisa.
Chama atenção o fato de ter sido feito sob o ponto de vista de uma sobrevivente de um suicídio, um suicídio acontecido dentro da sua família. O suicídio da irmã mais velha de Petra, Elena. Mas pensar o filme somente por este viés seria reducionista. Afinal, ele fala sobre resgate do passado e ressignificação da memória, a adolescência como luto da infância, sobre identificação. E este último aspecto é o que o texto abordará.
Existe um mecanismo psíquico, norteador das relações e das trocas que fazemos com a família e amigos, que é a capacidade de nos identificarmos. Ou seja, de tomar um pouquinho do outro pra gente, de absorver uma característica, um jeito. A identificação é um processo que constitui e também transforma o sujeito e no filme esse processo é esmiuçado, mostrando uma identificação inconsciente que foi trazida pra consciência, foi pensada e trabalhada em favor da própria Petra, pro seu próprio benefício psíquico, digamos assim.
Quando Elena morreu, Petra teve que se haver não só com seus sentimentos, mas com aqueles que imaginava terem sido os da irmã e acaba incorporando os de Elena como se dela fossem. Foi se identificando com a irmã morta. A morte de Elena tornou-a viva dentro de Petra. Misturadas. As duas se confundem e, depois, quando a mãe entra no enredo, as três se confundem. Há cenas em que é difícil distingui-las, não só pela semelhança física, a voz e o jeito de falar, mas muito em decorrência da filmagem, do enquadramento, explorados como recurso estético para contar esta história.
Petra foi virando Elena, seguindo seus passos, dançando, atuando, escrevendo, buscando um caminho em Nova Iorque, como a irmã. Ela mergulhou nesse processo, literalmente, como se vê em cenas do filme. Petra tornou-se a Ofélia morta, nadou em suas águas para poder encontrar de novo o chão firme.
Aliás, a alegoria shakespeariana de Ofélia, personagem de Hamlet que tira sua própria vida atirando-se nas águas do rio empresta um lugar simbólico à dor de Petra, que explora este manancial feminino comum onde tantas Ofélias, Elenas e Petras boiam, numa das cenas mais lindas do filme.
“Enceno a NOSSA morte”, Petra diz emergindo das águas. Ela precisou morrer junto com Elena para tentar construir uma simbolização daquela perda, para só então poder deixá-la ir.
Por isso a importância, no imaginário daquela família, de seu aniversário de 21 anos, quando Petra finalmente ficou mais velha que a irmã, livrou-se da “maldição”. Sobreviveu. Isso mostrava o medo de que ela seguisse os mesmos passos. No entanto, Petra trilhou um caminho sublimatório, para nosso deleite de espectadores, nos lembrando a frase da epígrafe, de Evandro Affonso Ferreira. O vocábulo, a arte como possibilidades elaborativas de vida. A Ofélia encontrou sua âncora (melhor dizendo, uma boia).
Petra encenou a difícil travessia de encontrar sentido para estar viva enquanto sua irmã tinha partido. Assim, foi possível ir se diferenciando, se discriminando da irmã. Até o momento em que toda aquela energia represada, todo aquele afeto enrijecido, fixado em Elena e entrelaçado com culpa, medo, raiva, tristeza, pôde se fluidificar, correr como água. Foi quando a dor virou memória. Uma memória inconsolável, mas, ainda assim, memória.
Há uma frase atribuída ao poeta Octavio Paz: “di-me cómo mueres y te diré quién eres”. Após assistir o filme concluímos que, no caso de Petra, “diga-me como sobreviveste e te direi quem és”.
Paula Mandel