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09/12/2021 - 2022, um sonho possível? por Carla Belintani



Depois de um longo período reclusos, estamos sendo convocados, aos poucos, a abrir as portas para o laço, para o encontro com o outro. Não somos os mesmos, voltamos transformados a uma possível rotina e novas janelas se abrem para o sonhar.


Como realizar tal travessia?


No final de 2020 estávamos no auge da pandemia. Na Casa Frida estudamos a relação da arte com o luto. O ano passado foi invadido por situações traumáticas que ainda estão em processo de elaboração, e essa articulação nunca se fez tão necessária. A oferta de um lugar de fala para que os traumas possam ser relatados e posteriormente costurados em uma cadeia simbólica parece ter sido o trabalho dos psicanalistas no período. Lives, atendimentos online, rodas de conversa foram ganhando cada vez mais visibilidade e iniciativa, proporcionadas pelo esforço de tantos psicanalistas − e artistas−, em busca de respostas que se mostraram efetivas, pois, mesmo no distanciamento, nos aproximamos. Precisamos sonhar o futuro como um alento a muitas situações de dor para que fosse possível atravessar os últimos anos. É preciso tempo para elaborar o trauma. As propostas realizadas pelo projeto também caminharam nessa direção. Naquele momento, comemoramos simultaneamente o centenário da escritora Clarice Lispector, nascida na Ucrânia e naturalizada brasileira, considerada uma das maiores representantes da literatura nacional. Com sua escrita visceral, Clarice remove véus ao se aproximar do âmago de questões humanas, deixando o leitor fora de sua zona de conforto. Como poderíamos pensar a arte nesse contexto? Foi assim que surgiu a ideia de trabalhar o conto Perdoando Deus para finalizar um ano em que fomos lançados de encontro ao desconhecido e enfrentamos as graves consequências da propagação do vírus da Covid-19. Foi um ano em que a natureza "nos escandalizou" frente à nossa impotência diante de tantas perdas e falta de rituais. Sendo assim, em dezembro de 2020 realizamos uma roda de conversa com o tema "Perdoando 2020", inspiradas pela escrita clariciana, que caminha em sintonia com o encontro com o inusitado que ameaça nossa capacidade de amar e realizar novos vínculos, processo fundamental na elaboração do luto. O conto relata o percurso de uma mulher que narra em primeira pessoa que "ia andando pela avenida Copacabana" se sentindo como raramente se sentia, livre. Naquele instante, ela se sente a mãe de Deus.


"E foi quando quase pisei num enorme rato morto. Em menos de um segundo estava eu eriçada pelo terror de viver, em menos de um segundo estilhaçava-me toda em pânico, e controlava como podia o meu mais profundo grito. (...) Então era assim?, eu andando pelo mundo sem pedir nada, sem precisar de nada, amando de puro amor inocente, e Deus a me mostrar o seu rato?"


Fomos todos surpreendidos por "um rato ruivo morto", algo do imprevisível que corta e fere uma eventual sensação de completude, o encontro com o rochedo da impossibilidade.


"Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões, é que se ama verdadeiramente." (Perdoando Deus, Clarice Lispector)

O conto Perdoando Deus integra o livro Felicidade Clandestina e foi publicado originalmente no Jornal do Brasil em 19 de setembro de 1970. Denso e passível de inúmeras leituras, é um conto que também fala sobre o amor. Nele, a narradora é catapultada para um abismo interno ao entrar em contato com o que para ela havia de mais horroroso.

O rato poderia ser a representação da castração, algo da ordem do impossível que se inscreve na realidade. Poderia ser a quebra da completude, representado de forma coletiva pela pandemia ou, então, o governo. Vivemos juntos momentos de desamparo, onde cada um foi encontrando uma forma única de se adaptar ao novo contexto. Nos resguardamos mais e vivenciamos momentos de maior solidão. Sentimentos que estavam enraizados e profundos vieram à tona com maior intensidade. A mensagem era clara: não podíamos nos entregar desprevenidos ao amor, estávamos todos cercados por perigos. Como podemos ser habitados por paradoxos tão grandes, a liberdade e, na sequência, a prisão? Como reavaliar as situações de horror e estranhamento que vivemos?

Lendo o texto "Cenas do traumático. O face a face com a morte", de Maria Laurinda, chamou-me a atenção uma passagem em que a autora relaciona a função da arte em casos extremos como este que vivemos:


"A arte cria laços sociais; rompe o isolamento narcísico. Fazer laços é uma forma de sobreviver, de resistir. Uma forma de expelir, elaborar o terror interno provocado pelas situações traumáticas, numa tentativa de denunciar, transformar, coletivizar, retirar o corpo da entrega apassivada; impedir o corpo de ocupar o lugar de retirante, de território onde se sepulta o mal. A recusa a essa sepultura é um sinal de luta pela vida."


Na mesma direção apostamos no recurso da arte como uma possível forma de facilitar o trabalho do luto, trazendo representações para o indizível da dor. A Casa Frida, durante a pandemia, se tornou uma casa de trabalho intenso em que rodas de conversa online foram oferecidas com o intuito de reunir pessoas em torno de disparadores artísticos e, assim, fazer circular a palavra. Uma das ações realizadas no período foi o projeto Travessias, já que nunca se fez tão necessário atravessar a ponte que percorremos sobre abismos, caminhando rumo ao desconhecido onde já não é possível voltar ao que éramos antes. Saímos transformados da situação. A narrativa presente nos encontros se tornou uma forma de fazer ponte com o outro, conectar histórias por meio do relato que a arte impulsionava em cada sujeito.

No dicionário, travessia significa a ação de atravessar de lado a lado uma região, um rio, um mar. Atravessamos um momento pandêmico e reinventamos a realidade. Travessias seriam a construção de um caminho possível, assim como a travessia de um percurso analítico. Pontalis escreve um texto poético chamado Travessias em que retoma a trajetória de Ulisses:

"A Odisseia não é um relato de viagem nem de aventuras (...) mas de uma travessia, a travessia de um mar na maior parte das vezes hostil - tempestades, naufrágios -, a travessia do tempo, uma travessia do desconhecido, povoado por criaturas estranhas, de monstros e quimeras, como os que encontramos em nossos sonhos e pesadelos."

Pontalis descreve a travessia da vida com perigos constantes e em que seguimos lutando continuamente − há um trabalho de luta implícito na definição. Da mesma forma, o momento pandêmico nos surpreendeu, alterando rumos e trazendo tantos lutos. A natureza se mostrou soberana ao homem, e fomos atingidos por um vírus que nos obrigou a nos reinventarmos de acordo com a nova realidade. Seguimos por caminhos desconhecidos, um novo mar se abriu a todos nós, assim como o poema épico de Homero. Navegamos por mares desconhecidos na busca de bons ventos que nos conduzissem de volta à casa.

Freud, durante o segundo ano da Primeira Guerra, escreve um texto belíssimo sobre a transitoriedade, observando a destruição causada por inúmeras mortes e pelo extermínio de patrimônios. Mesmo diante de tamanha dor, ele é otimista e acredita na capacidade humana de reconstruir o que a guerra destruiu, talvez até em terreno mais firme e duradouro.

Vivenciamos um longo período de guerra contra um vírus e agora talvez seja chegado o momento de, assim como Penélope, rememorar e costurar o passado para que a dor possa ser ressignificada, um caminho possível para a elaboração do trauma.


Utilizamos o conto de Clarice em uma das rodas de conversa do projeto Travessias porque sua escrita nos convoca a pensar a condição ambivalente da natureza humana. O bem e o mal coexistem e fazem parte da nossa constituição enquanto sujeitos, assim como o encontro com o traumático nos faz pensar em novas possibilidades de abertura para que uma elaboração seja possível, mesmo havendo sempre um resto. Para que um ciclo termine e se inicie outro é necessário um trabalho de luto. O encontro com o traumático, o rato ruivo morto, nos desassossega, e é preciso cerzir como Penélope, um novo tecido, que carregue esperança.


Realizar a leitura das obras de Clarice durante os anos de 2020 e 2021 foi essencial no processo de espera. Acompanhar a trama de G.H no encontro com a barata se tornou uma verdadeira epopeia. Fui indo, "apenas indo, como uma cega perdida num campo": foi nesse seguir que surgiu a transformação. Um quarto que não tinha nem começo e nem fim, "era um igual que se tornava o indelimitado". Ouso escrever que estávamos todos parecidos com G.H em busca de um contorno de si mesma. O encontro com a barata arruivada e cheia de cílios. O abismo entre a loucura e a sanidade. A função da análise também implica certa metamorfose. Houve um aumento da procura nos consultórios durante a pandemia, a busca por um analista que se fizesse testemunha da travessia individual de cada sujeito. O momento pandêmico facilitou o mergulho interno na busca por um saber maior de si.


"Por eu ter mergulhado no abismo é que estou começando a amar o abismo de que sou feita". (A Paixão segundo G.H, Clarice Lispector)

Pulsão de vida e de morte se entrelaçam em uma única sinfonia, e o leitor que ingressa nessa experiência passa por um processo de reinvenção e desconstrução. Passamos por períodos em que sobrevivemos, assim como a personagem Macabéa, utilizando os recursos que tínhamos à mão, contentando-nos com o que se fazia possível dentro dos muros de cada casa e aceitando a privação do contato com os outros. Acompanhamos "a hora da estrela" de milhares de pessoas vítimas e atravessadas pelo trauma dos familiares que ficaram. Sentimos na pele nossa impotência frente à soberania da natureza.

Por outro lado, o ano de 2021 foi passando, a esperança na saúde pública voltou a se fortalecer e a vacina teve adesão da maior parte da população. Houve o predomínio de Eros, a aposta de que seria possível um novo laço com instituições e o próximo. A libido foi sendo direcionada para fora, a possibilidade de sonhar voltou a nos habitar −sonhos na busca de realização de desejos. Podemos sonhar com a possibilidade do fim da pandemia para 2022 com os registros do número de mortes se estabilizando.

Ao mesmo tempo em que todo ganho implica renúncia, finalizar um período pandêmico seria se abrir novamente à alteridade do encontro com o outro. Um novo trabalho de luto será necessário. Sair do encapsulamento narcísico em que nos fechamos, momento propício para exacerbar a modalidade narcísica do contexto atual em que cada vez mais as redes sociais ganham espaço, habitando os sujeitos em bolhas narcísicas em especial presença no contexto cultural atual. Quem sabe essa abertura para um novo ano propicie interações e laços com o outro sem tantas ameaças?

Nós, analistas, estamos também nos preparando para o retorno aos atendimentos presenciais, atentos a resgatar o corpo sensível do analisando na possibilidade de conectar corpo e palavra. O atendimento digital se fez efetivo e novas formas de análise foram desenvolvidas em meio ao caos. Há como encontrar formas criativas de lidar com o inusitado. A pandemia nos ensinou novas formas de trabalho ao mesmo tempo em que seu término nos impulsiona a ocupar uma nova posição, diferente da que ocupamos antes. Saímos transformados dessa experiência e agora vislumbramos uma nova abertura para o sonhar.


“Foi um sonho tão forte que acreditei nele por minutos como uma realidade. Sonhei que aquele dia era Ano Novo. E quando abri os olhos cheguei a dizer: Feliz Ano Novo! Não entendo de sonhos. Mas este me parece um profundo desejo de mudança de vida. Não precisa ser feliz sequer. Basta ano novo. E é tão difícil mudar. Às vezes escorre sangue.” (Felicidade Clandestina, Clarice Lispector)

Agora que estamos "grávidos de futuro", que a arte e especialmente a literatura de Clarice nos façam tornar a travessia para 2022 ainda mais possível, reforçando a importância da memória de tantas marcas e registros traumáticos que carregamos. "Não esquecer que por enquanto ainda é tempo de morangos.”



Referências bibliográficas:


Freud, a transitoriedade (1915)

Freud, análise terminável e interminável (1937)

Lispector, Clarice. A paixão segundo G.H

Lispector, Clarice. Felicidade Clandestina, "Perdoando Deus"

Lispector, Clarice. A hora da estrela.

Lispector, Clarice. A descoberta do mundo.

Pontalis, J.-B. Antes. (2013)


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