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A Vergonha, Annie Ernaux




“Meu pai tentou matar minha mãe num domingo de junho, no começo da tarde”

(A Vergonha, Annie Ernaux)


Em “A vergonha”, a escritora francesa ganhadora do prêmio Nobel de literatura, Annie Ernaux, descreve em detalhes um acontecimento familiar: uma briga doméstica ocorrida quando tinha 12 anos, em que o pai passou perto de assassinar sua mãe.

Esta tentativa de homicídio perpetrada por seu pai marcou a vida da autora e, em suas próprias palavras, “afundou-os na desgraça” (gagner du malheur), o que no dialeto normando significa: “ficar louco e infeliz para sempre depois de ter vivido uma situação de pavor”.

Annie Ernaux vai nos contando da sensação de que sua história se divide em “antes” e “depois” daquele fato, promotor de uma fissura que demarca violentamente o final da infância e entrada na adolescência.

O que faz de um acontecimento um trauma aos olhos da psicanálise?

Uma experiência intensa, invasiva e desorganizadora, contra a qual o sujeito não tem recursos psíquicos para se defender, seja pela imaturidade em razão da idade e fase de desenvolvimento, seja pelo excesso da invasão sofrida. Para além da intensidade disruptiva da experiência vivida é a impossibilidade de atribuir-lhe um sentido o fator adoecedor. Os afetos ficam sem ligação quando não lhes é atribuído um significado que minimamente apazigue o sujeito.

O desmentido ou o silêncio relegam o sujeito à solidão. No caso do livro isso fica gritante no trecho abaixo:

“Em nenhum lugar havia espaço para a cena daquele domingo de junho.

Aquilo não podia ser dito a ninguém, em nenhum dos meus dois mundos.

… O pior da vergonha é que achamos que somos os únicos a senti-la.” P. 68

Após o ocorrido, os pais agiram como se nada tivesse acontecido, como se o silêncio pudesse dar conta, mas o silêncio só afunda aquilo que se quer esconder. E o que afunda desajeitadamente tende a reemergir. Assim são formados os sintomas, ou seja, nossas saídas psíquicas ou psicossomáticas.

Com o livro a autora faz um trabalho de elaboração deste trauma, descrevendo o acontecido em detalhes, historicizando-o em sua narrativa de vida (além de contextualizá-lo socialmente na França do após 2ª Guerra Mundial). A escrita vai colocando palavras onde antes só havia excesso e, quem sabe, é sua tentativa – ativa – de “sair da desgraça” e emergir em águas novas.


Paula Mandel



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