Texto apresentado na mostra de cinema, mineração e meio ambiente na Nave Coletiva.
Convite do Instituto Taliberti
Boa noite, gostaria de agradecer o convite, para mim é um privilégio estar aqui revendo a Helena e a Cecilia, dividindo essa mesa "Travessias da Vida" com uma discussão tão fundamental e de extrema importância, falar sobre o luto, tema universal e ao mesmo tempo tão evitado. Um interesse central na minha clínica e também no projeto que fundei, junto com a Renata Cattacini e a Isadora Lousa, chamado A Casa Frida hoje conta também com parceria de outras psicanalistas, Marcela Assef, Fabiana Domingues e Paula Mandel. Minhas queridas amigas que tenho a honra de representar nesta noite.
Estamos aqui para debater um filme que traz uma oportunidade de reflexão sobre o luto. Mas o que é o luto? Numa definição simples e em poucas palavras, o luto é o trabalho psíquico de uma pessoa diante de uma perda. Esse filme certamente é fruto da elaboração do luto da Cecilia, diante da perda da sua melhor amiga, Camila. O filme simboliza também o luto de milhares de pessoas e talvez de milhões porque a tragédia da barragem de Brumadinho foi um dos maiores desastres ambientais registrados no mundo. Por isso a importância e a urgência desse debate.
E por que falar do luto? Todos nós aqui já passamos por alguma perda significativa na vida. A perda faz parte dos ganhos, como a morte é parte integrante da vida. Vivemos em uma sociedade, especialmente no ocidente, mais especialmente ainda no Brasil, que evita o tema da morte e da finitude, mesmo sendo algo que atinge a todos nós. E se a gente evita esse tema, fica mais complicado se fazer um luto e aí não há trabalho, nem elaboração.
Quem aqui nunca conheceu alguém que não conseguiu elaborar uma perda e fica aprisionado ao passado, vivendo uma dor incapaz de ser superada? Para que o trabalho de luto aconteça é preciso fazer uma narrativa dessa perda, reviver diversas vezes o que se perdeu para que lentamente uma elaboração aconteça. Como por exemplo as mães da praça de maio na Argentina. Elas tiveram seus filhos desaparecidos durante a ditadura, e até hoje se reúnem na praça, mantendo o passado vivo e o legado de seus filhos.
A perda é também uma condição inerente ao ser humano, o nascimento é a nossa primeira experiência de perda, perdemos nossa primeira casa quente e confortável para o desafio de toda uma vida que começa do lado de fora da barriga. Depois vivemos inúmeros nascimentos em vida durante o amadurecimento.
A pintora mexicana Frida Kahlo, artista inspiradora do nosso projeto, sofreu inúmeras perdas. Aos seis anos contraiu poliomielite, deixando suas pernas com diferença de tamanho. Era chamada de "perna de pau" na escola. Aos 18, Frida sofre um acidente de bonde. Uma barra de ferro atravessa seu corpo. Ficou acamada e passou por inúmeras cirurgias. Enquanto se recuperava descobriu a pintura. Foi a partir do contato com a dor e a espera que esse período exigiu, que encontrou na arte o recurso para ressignificar sua perda. Uma possível forma de enfrentar a morte - tema recorrente em suas obras. No seu último quadro, em que retrata a natureza morta, escreve "Viva la vida", a mensagem que compreendi foi de que é preciso muita vida para lidar com o luto e a finitude. Além de retratar a morte em muitos dos seus quadros, Frida é a artista que mais produziu auto retratos. Como se estivesse na frente do espelho, pintava a si mesma de acordo com o que estava sentindo.
Cecilia que está aqui ao meu lado, entre nós, também é uma artista. Assim como Frida, utiliza da arte como forma de retratar sua dor e elaborar seu luto. A Cecilia não só dirigiu o filme como também foi protagonista. Participou de rituais, se cobre com argila, tem inúmeras conversas com profissionais e amigos e o espectador acompanha a amizade tão forte e sincera que construiu com Camila e que permanece. Ou seja, utiliza como recurso do seu trabalho de luto a produção de um filme em que há narrativa e seu luto é inscrito em uma cadeia de significados.
Se pensarmos o cinema como um sonho, um sonho projetado na tela, voltamos à psicanálise, tendo o sonho como porta ao inconsciente. Cecília termina o filme olhando para as montanhas, o que ela tenta enxergar? Talvez um novo horizonte, um novo dia que vai nascer, uma nova travessia do seu processo de luto. Um caminho sinuoso, com obstáculos para transpor e cheio de altos e baixos.
O processo criativo ajuda a dar sentido à perda. Cada um que assiste a esse documentário encontra suas próprias perdas. Cecilia parece ter realizado a travessia de uma dor sem palavras - para uma dor inserida em uma narrativa.
Como dizia Freud, o trabalho do luto é uma tarefa realizada em detalhe, com grande investimento de tempo e energia. Durante o período de luto, o ser amado perdido continua a existir no psiquismo, e é preciso tempo para sair do caos e elaborar a nova realidade. Assim como em inúmeras cenas do filme, Camila e Cecilia parecem se misturar. Esse tempo de elaboração é particular, porque cada um carrega sua própria história. Muitas vezes, a luta que o luto exige é incompreensível e enigmática. Por isso a necessidade de trazer esse tema tão delicado para o coletivo.
Que o filme da Cecilia e as ações do instituto, continuem semeando iniciativas como essa, a possibilidade de falar sobre o luto, oferecendo continência para ampliar a capacidade de simbolização das pessoas que atravessam por perdas, tão essenciais nas travessias da vida.
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