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Reflexão sobre o filme “Dois Estranhos”

"Dois Estranhos" (2020), disponível na Netflix, é o curta foi o ganhador do Oscar deste ano na categoria melhor curta-metragem de ficção. Dirigido por Martin Desmond Roe e Travon Free, o filme de 32 min conta a história do cartunista Carter James (Joey Bada), um homem negro, que está tentando voltar para casa depois um primeiro encontro bem-sucedido. Porém, ele acaba sendo vítima de um policial (Andrew Howard) no momento em que sai do prédio em que passou a noite. No momento em que é morto por este policial, James acorda novamente no apartamento de sua companheira, acreditando que tudo não passou de um sonho. Ao ir embora, revive o encontro com o policial e sua morte, sendo este ciclo repetido diversas vezes.

Assistimos Carter tentando encontrar saídas diferentes para quebrar a repetição, ou seja, a repetição do encontro terminar sempre com sua morte, para que, assim, possa ir para casa e reencontrar seu cachorro que está à sua espera. Este breve filme, que foi inspirado no assassinato de George Floyd em maio de 2020 por um policial branco, aponta para diversas temáticas que traz inúmeras reflexões, dentre elas, a temática do preconceito racial e do ódio ao diferente que culmina no desejo de seu extermínio.

O personagem Carter, ao meu ver, representa o que a população negra vive há séculos: um destino mortífero que, não importa as ferramentas que estejam disponíveis externas ou internas para mudar, tal destino já está escrito. Freud, em 1920, fala em seu emblemático texto "Além do Princípio do Prazer" sobre a compulsão à repetição. Esta estaria a serviço da pulsão de morte, em que experiências desprazerosas seriam repetidas em atos da vida ou sonhos. A compulsão à repetição reflete no sujeito sensações de angústia, em que sente que a vida não caminha e uma sensação de estranhamento por sempre estar em repetidas circunstâncias dolorosas.

Ao mesmo tempo, tal compulsão também pode ser compreendida como uma forma do aparelho psíquico procurar elaborar um evento traumático que não encontrou representação, ou seja, linguagem e narrativas, para ser agregado ao campo simbólico do sujeito. A vivência traumática, então, ficaria com que "solta" dentro do psiquismo, sendo constante revivida de forma distorcida em sonhos ou comportamentos até que seja acolhida e elaborada.

Arrisco dizer que os encontros do personagem com o policial branco e sua morte representam o traumático que os negros carregam em sua história inter e transgeracional, sendo ele o racismo e um lugar de não-sujeito dentro da comunidade social, ambos totalmente arraigados em nossa cultura. O filme é um convite a se pensar juntamente à psicanálise o quanto histórias de violência passadas continuam sendo repetidas pelas gerações seguintes: Carter carrega a opressão e o silenciamento pela supremacia branca que há séculos existe. Ele morre e revive para tentar, de uma certa forma, consertar, sua relação com o policial, aquele que tem uma autoridade e, por que não, uma permissão coletiva para aniquilá-lo.

Dois Estranhos é um apelo para aquilo que insiste em ser silenciado, mas que volta à tona como mortífero e que deve, cada vez mais, ser agregado aos discursos e à comunidade social.

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