"Não sou eu quem me navega
Quem me navega é o mar"
Timoneiro - Paulinho da Viola
A pandemia nos surpreendeu, alterando rumos e trazendo tantos lutos. A natureza se mostrou soberana ao homem, fomos atingidos por um vírus que nos obrigou a nos reinventar de acordo com esta nova realidade. Seguimos por caminhos desconhecidos, um novo mar se abriu a todos nós. Este momento trágico nos remete ao poema épico de Homero, a Odisseia.
Aristóteles dizia que o épico é um conteúdo de vasto assunto. Uma mescla de grandes e pequenas travessias, na tentativa de alcançar a essência das questões humanas. Walter Benjamin escreveu que do ponto de vista da existência humana, não há nada mais épico do que o mar. O poeta épico colhe na beira do mar os resultados do que acontece no vasto espaço das águas, assim como uma concha recolhe o som do oceano. Repousa e sonha com a memória coletiva das batalhas marítimas.
A Odisseia narra as peripécias de Ulisses (ou Odisseu) na sua árdua travessia pelo mar que o solicita por todos os lados na tentativa de retornar para casa, após a vitória na Guerra de Troia, e os 10 anos que tardou seu retorno para Ítaca, onde o esperavam a esposa Penélope e o filho Telêmaco.
A resiliência de Ulisses e sua persistência em superar os obstáculos da viagem o tornaram digno da proteção da deusa Atena e o qualificam como herói. O herói mitológico é assim considerado não apenas por seus feitos vitoriosos, mas principalmente por sua decadência. A jornada do herói nos remete às inquietações inerentes a todos, como realizar escolhas, pois ao escolhermos uma direção, abrimos mão de outras possibilidades. A busca pelo equilíbrio entre a agressividade e a conciliação, oscilando entre o medo paralisante e a coragem propulsora e, também, enfrentando o luto por aqueles que ficaram pelo caminho, nas profundezas ou nas ilhas do mar de Poseidon.
Assim como Ulisses, o sujeito se depara com conflitos: responsabilizar-se pelo próprio desejo ou atribuí-lo à sedução de Calipso?
Este poema épico serve de esteio a ricas elaborações e, talvez por isso, siga tão atual, pela atemporalidade de suas imagens. Afinal, desde a tenra idade, somos marcados pela curiosidade sobre nossas origens, curiosidade esta que nos lança rumo ao desconhecido. A psicanálise relaciona as teorias infantis aos mitos, que tentam justificar a origem da vida e dar sentido aos mistérios que se apresentam. A mitologia grega, em específico, tenta dar conta dos enigmas e trazer alguma figurabilidade ao indizível.
Neste momento enfrentamos, coletivamente, um vírus letal que nos colide com o real da doença, da morte e das perdas. Os monstros em nossa cartografia ganharam vida. E, se não podemos nos lançar à estrada ou ao oceano em livres expedições, podemos sim mergulhar internamente ou, com a ajuda da poética mitológica, nos aventurar em outras explorações.
Para isso, convidamos um dos maiores velejadores de travessias oceânicas do mundo, Beto Pandiani, que tem registradas mais de 30 mil milhas náuticas, em 800 dias passados no mar, num catamarã pouco maior que ele mesmo. Beto aceitou gentilmente compartilhar conosco algumas de suas aventuras relatadas no seu livro “Minha terra é o mar”, em que conta não apenas de uma viagem, mas sobre o que representa seu encontro com o mar. Em tempos atuais, nunca precisamos tanto planejar, administrar riscos, praticar resiliência e pensar coletivamente para sustentar esse momento pandêmico.
Que relação esses temas teriam com a arte de velejar?
Venha navegar conosco!
Esperamos que esta travessia mar adentro seja uma viagem aos sonhos marítimos, na busca por bons ventos e que todos retornem para casa, assim como Ulisses, com novas inspirações e descobertas.
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