“nós andamos neste mundo
no teto do inferno
olhando as flores”
(Kobayashi Issa)
“Do que é mais difícil fazer luto? Do que perdemos ou do que nunca tivemos?”
(“Uma rosa só”, Muriel Barbery)
O livro “Uma rosa só”, de Muriel Barbery, conta a história de Rose, uma mulher francesa que viaja ao Japão para a leitura do testamento de seu pai, até então um total desconhecido. Ao explorar as origens deste pai estrangeiro Rose vai escavando suas próprias raízes.
O tema central do romance é a perda de alguém que nunca se teve. Se já é complexo o trabalho de luto de um ser conhecido e querido que partiu, que dirá o processo - multifásico - que envolve primeiro se familiarizar com esta figura imaginada para, só então, poder elaborar sua perda. Rose precisava antes se apropriar deste pai “inventado”, cultivá-lo dentro de si, para, aí sim, ter condições de podá-lo de sua vida.
Claro que toda relação é um tanto fantasiada, dotada de projeções. O outro nunca é exatamente “o” outro, mas “um” outro, idealizado. A complexidade aumenta quando o enlutado não dispõe de uma narrativa apoiada na vivência de histórias compartilhadas, mas apenas e tão somente um vazio que precisará ser preenchido com elementos enxertados.
Em “Uma rosa só” a personagem principal tem nome de flor e é botânica, ressaltando o amplo uso das flores como imagem para simbolizar a finitude, mas também o potencial transformador do tempo, afinal, “é preciso morrer uma primeira vez para poder realmente nascer” (trecho).
Neste aspecto o livro dialoga com o texto “A transitoriedade”, escrito por Freud em 1915 e publicado em 1916:
“Quanto à beleza da Natureza, cada vez que é destruída pelo inverno, retorna no ano seguinte, de modo que, em relação à duração de nossas vidas, ela pode de fato ser considerada eterna”.
Enquanto me deliciava com as frases lapidadas de imagens poéticas do romance lembrei do filme “A partida”, outra obra prima sobre o tema do luto, sobre a qual já discutimos em atividades da A Casa Frida.
Impossível não associar as duas obras de arte, já que ambas tratam das feridas provocadas pela ausência do pai nas personagens principais (Rose no livro, Daigo Kobayashi, no filme); ambas louvam o poder curativo dos rituais, marcos organizadores da rotina do enlutado e facilitadores de laço social, tão importante no enfrentamento das perdas.
Além disso, as duas obras revelam um Japão cheio de tradições e espiritualidade, terra das cerejeiras e dos haikais, lembrando que as cerejeiras têm uma florada curta, e talvez por isso tão especial, e lembrando também que os haikais são poemas curtos, de apenas três versos cujo tema é, necessariamente, a natureza.
Se no livro as flores são fundamentais para a narrativa, no filme “A Partida” é o elemento pedra que simboliza o transcurso do tempo e a transmissão da herança do pai para o filho.
Muito acresceu-se ao estudo do luto desde Freud. Sabe-se que este trabalho psíquico nunca termina efetivamente, mas se transforma com a fluidez dos afetos e a recombinação das representações em novos sentidos.
Sabe-se, também, o quanto a arte é instrumental neste processo de fazer florescer a tristeza em botão novo.
Por isso, recomendamos a leitura!
Por Paula Mandel
Excelente recomendação! Obrigado!